A leitura constitucional das cartas precatórias criminais a partir da inteligência do artigo 400 do código de processo penal: o direito de o acusado ser ouvido sempre ao final da instrução

O artigo 400 do Código de Processo Penal estabelece, a partir da redação da Lei Federal n. 11.719/2008, a ordem processual constitucional para a realização da audiência criminal de instrução e julgamento.

“Artigo 400 do CPP:  Na audiência de instrução e julgamento, a ser realizada no prazo máximo de 60 (sessenta) dias, proceder-se-á à tomada de declarações do ofendido, à inquirição das testemunhas arroladas pela acusação e pela defesa, nesta ordem, ressalvado o disposto no art. 222 deste Código, bem como aos esclarecimentos dos peritos, às acareações e ao reconhecimento de pessoas e coisas, interrogando-se, em seguida, o acusado.”

Nada obstante, costumeiramente os Tribunais pátrios têm admitido a inversão desta ordem em vista do alardeado parágrafo 1º do artigo 222 do mesmo diploma legal:

“Artigo 222 do CPP:  A testemunha que morar fora da jurisdição do juiz será inquirida pelo juiz do lugar de sua residência, expedindo-se, para esse fim, carta precatória, com prazo razoável, intimadas as partes.

§ 1o: A expedição da precatória não suspenderá a instrução criminal;

[…].”

Diante disso é bastante comum se observar a realização do interrogatório do acusado antes mesmo do esgotamento das oitivas das testemunhas, inclusive com a prolação de sentença sem que a instrução processual esteja de fato concluída.

Ocorre que, aos olhos da normativa constitucional de 1988, tais atos processuais violam os princípios do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório, sem olvidar no corolário direito de o arguido poder (dever) se manifestar por último[1].

Neste sentido, note-se que as expressões “nesta ordem” e “em seguida” abordadas pelo legislador no artigo 400 do Código de Processo Penal outorgam o grau de constitucionalidade aos supracitados princípios e direito, na medida em que delimitam a possibilidade da intervenção Estatal. Qualquer posicionamento em contrário, portanto, vai de encontro à Constituição da República.

Ao que parece, a análise detida do mandamento legal em questão revela que o termo “ressalvado o disposto no art. 222 deste Código” faz referência à ordem das testemunhas arroladas pelas partes processuais (acusação e defesa) que, via de regra – ressalvada a existência de carta precatória, portanto –, deverá seguir esta lógica: primeiro serão ouvidas aquelas arroladas pela acusação e depois as arroladas pela defesa. Diferente é, entretanto, a interpretação acerca do interrogatório do acusado, que sempre deve ser realizado a posteriori, ou seja, “em seguida”.

Veja-se que a inversão dos atos processuais permitida, em tese, por ocasião da existência de Carta Precatóriarespeita apenas e tão somente às testemunhas arroladas pela acusação versus testemunhas arroladas pela defesa. Nesta ótica, o que se permite é a eventual oitiva prematura das testemunhas de defesa que residem em outra comarca em detrimento daquelas indicadas pela acusação, por exemplo. Nada além disso e desde que tal ato seja fundamentado por decisão judicial[2] idônea (artigo 93, inciso IX, da Constituição Federal).

Situação absolutamente diversa, como dito, é aquela que envolve o interrogatório do arguido. A ele é dado o direito de falar por último e de se manifestar acerca de todos os atos processuais pretéritos, especialmente em vista das garantias constitucionais da ampla defesa e do contraditório.

Qualquer inobservância da regra procedimental estabelecida sob esta interpretação é causa de nulidade processual, haja vista a flagrante violação ao princípio do devido processo legal.

Neste exato sentido recentemente o Egrégio Supremo Tribunal Federal se manifestou e trouxe importantes reflexões acerca do tema ora abordado:

“Conforme relatado, a presente impetração está centrada na alegação de nulidade decorrente do fato de o interrogatório do réu ter ocorrido antes da oitiva do ofendido, que se deu por meio de precatória.

(…)

A RELAÇÃO DE ANTAGONISMO ENTRE AS VERSÕES DA ACUSAÇÃO E DA DEFESA E A NECESSIDADE DA CONDUÇÃO DIALÉTICA DO PROCESSO NÃO DEIXAM DÚVIDAS SOBRE QUEM TEM O “DIREITO DE FALAR POR ÚLTIMO”: O ACUSADO.

O DIREITO DE FALAR POR ÚLTIMO ESTÁ CONTIDO NO EXERCÍCIO PLENO DA AMPLA DEFESA ENGLOBANDO A POSSIBILIDADE DE REFUTAR TODAS, ABSOLUTAMENTE TODAS AS INFORMAÇÕES, ALEGAÇÕES, DEPOIMENTOS, INSINUAÇÕES, PROVAS E INDÍCIOS EM GERAL QUE POSSAM, DIRETA OU INDIRETAMENTE, INFLUENCIAR E FUNDAMENTAR UMA FUTURA CONDENAÇÃO PENAL.

LOGO, O RÉU TEM O DIREITO DE FALAR POR ÚLTIMO SOBRE TODAS AS IMPUTAÇÕES E PROVAS QUE POSSAM LEVAR A SUA CONDENAÇÃO, CONFORME CONSAGRADO EM TODOS OS ORDENAMENTOS JURÍDICOS DEMOCRÁTICOS.

O ordenamento jurídico italiano, por exemplo, ao estabelecer o desenvolvimento da discussão processual, no Capítulo V, do artigo 523 do Código Processual, estabelece no item 5, que “De qualquer forma, o acusado e o defensor devem ter, sob pena de nulidade, a última palavra, se o solicitarem”.

O ordenamento jurídico espanhol, igualmente, consagrou que sempre haverá vulneração à ampla defesa e um prejuízo real e efetivo aos interesses do réu se não puder impugnar todos os argumentos apresentados, ou seja, se lhe for negado o direito à última palavra, com o conhecimento prévio e pleno de toda a atividade probatória realizada e de todos os argumentos apresentados e que possam ter influência em sua eventual condenação.

Nas Sentenças 181/1994, 29/1995, 91/2000, 13/2006 e 258/2007, o Tribunal Constitucional da Espanha estabeleceu que o “direito à última palavra” no processo penal deve ser do acusado, que deve ter a oportunidade final de apresentar suas argumentações como garantia efetiva do princípio da ampla defesa.

Na Alemanha, o Código de Processo Penal alemão (StPO), em sua Seção 258, 2, determina que O RÉU TERÁ SEMPRE A ÚLTIMA PALAVRA (“O promotor público tem o direito de responder; o réu terá a última palavra”), em todos os procedimentos penais, inclusive nas hipóteses de delações e Justiça Premial (BGH 4 StR 240/97 – Urteil vom 28. August 1997 – LG Dortmund; BGH GSSt 1/04 – Beschluss vom 3. März 2005 – LG Lüneburg/LG Duisburg).

Na América do Sul, a Corte Constitucional colombiana consagrou ao acusado, com base na ampla defesa, o denominado “último turno de intervenção argumentativa” (Corte Constitucional mediante, Sentencia C651 de 2011; Corte Constitucional mediante Sentencia C-616, de 2014).

O DEVIDO PROCESSO LEGAL, AMPLA DEFESA E CONTRADITÓRIO, PORTANTO, EXIGEM QUE O RÉU SE MANIFESTE APÓS TER O PLENO CONHECIMENTO DE TODA A ATIVIDADE PROBATÓRIA REALIZADA DURANTE O PROCESSO, PODENDO CONTRADITAR TODOS OS ARGUMENTOS TRAZIDOS NOS AUTOS.

Não foi outro o entendimento da Suprema Corte Americana, no caso Crawford vs. Washington (2003), onde decidiu que toda prova utilizada para comprovar a veracidade de fatos somente poderá ser admitida em juízo se o destinatário da imputação tiver a oportunidade de examinar e contestar seu integral teor. Esse é o mesmo posicionamento do Tribunal Europeu de Direitos Humanos, em diversas decisões (Asch vs. Áustria, 1991; Isgrò vs. Itália, 1991; Kostovski vs. Países Baixos, 1989; Camilleri vs. Malta, 2013).

O réu tem o direito de examinar cada um dos fatos que lhe são imputados, assim como as provas que os amparam, e também o direito de contestar, posteriormente, seu inteiro teor; ou seja, o “direito de falar por último”.

Toda imputação relativa à comprovação do fato criminoso somente poderá ser fundamento para a sentença condenatória se o acusado tiver oportunidade posterior, adequada e suficiente para contestar seu inteiro teor.

Nesse sentido, o Plenário desta CORTE, reiterando a consagração da plena efetividade do contraditório e da ampla defesa, no julgamento do HC 127.900, determinou a obrigatoriedade de realização do interrogatório ao final da instrução processual (HC 127.900, Rel.Min. DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, DJe de 3/8/2016).

Dessa forma, a negativa de pedido expresso da defesa caracterizou flagrante desrespeito ao devido processo penal, à ampla defesa e ao contraditório, pelo que CONCEDO A ORDEM DE HABEAS CORPUS para anular a decisão de 1º grau, determinando a realização de novo interrogatório, como último ato da instrução, com sequência regular das demais fases processuais.”

(STF – HC n. 176.332/SP – Relator: Ministro Alexandre de Moraes. Julgado em: 17/10/2019).

Este importante precedente, em consonância absoluta com a legislação alienígena, visa retomar o caminho constitucional da instrução criminal (por vezes violada), conferindo ao acusado o direito de se manifestar por último acerca de todos os atos processuais anteriores.

Portanto, diante das mais recentes interpretações legislativa, doutrinária e jurisprudencial, tem-se que qualquer hipótese permissiva à inversão da ordem legal do processo, notadamente aquela disposta no artigo 400 do Código de Processo Penal e especialmente a qual impõe ao acusado a obrigatoriedade de se autodefender antes do término efetivo da instrução processual, deve ser considerada inconstitucional ao passo do reconhecimento da imprestabilidade de todos os atos processuais encartados a partir da violação verificada no caso concreto.

Artigo de autoria do advogado Guilherme Meotti do Accioly, Laufer Sociedade de Advogados. Especialista em Processo Penal pelo IBCCRIM – IDPEE Coimbra – Portugal. Membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCRIM.


[1] Vide: “Após toda a produção probatória, será realizado o interrogatório do acusado. A colocação do interrogatório ao final da instrução reforça sua natureza como meio de defesa (embora eventualmente possa ser, também, meio de prova, em caso de confissão). (…) O interrogatório é o ato em que o acusado exerce pessoalmente seu direito à autodefesa, em especial seu direito de audiência, de expor ao magistrado a sua versão sobre os fatos e sobre as provas produzidas. (…) Sobre o momento do interrogatório, deve ser feito após a produção de todas as provas, seja no juízo ou por carta precatória.” (GOMES FILHO, Antonio Magalhães; TORON, Alberto Zacharias; BADARÓ, Gustavo Henrique. Código de Processo Penal Comentado. 2ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 779 – 780).

[2] Nesse sentido: “PROCESSO PENAL. RECURSO EM HABEAS CORPUS. CRIMES TRIBUTÁRIOS. INVERSÃO DA ORDEM DOS INTERROGATÓRIOS. CARTAS PRECATÓRIAS EXPEDIDAS SIMULTANEAMENTE PARA INQUIRIÇÃO DE TESTEMUNHAS E INTERROGATÓRIO DO ACUSADO. AUSENTE QUALQUER SITUAÇÃO EXCEPCIONAL A PERMITIR A INVERSÃO. ILEGALIDADE VERIFICADA. RECURSO EM HABEAS CORPUS PARCIALMENTE PROVIDO. 1. Embora o artigo 222, §1º, do Código de Processo Penal, disponha que a expedição da carta precatória não suspende a instrução criminal, a hipótese não autoriza a indiscriminada inversão procedimental da ordem prevista no artigo 400 do Código de Processo Penal, sendo necessário que o Juízo processante observe o interrogatório do acusado como ato final da instrução. 2. Considerando que o Juízo de 1º grau determinou simultaneamente a expedição de cartas precatórias para inquirição de testemunhas e para a realização de interrogatórios dos réus, sem apresentar qualquer fundamentação ou circunstância excepcional a permitir a adoção de tal medida, há flagrante ilegalidade a ser reparada. 3. Recurso em habeas corpus parcialmente provido para determinar que o interrogatório dos réus sejam realizados após a inquirição das testemunhas, ou, caso necessária a inversão da ordem, esta esteja autorizada por decisão devidamente fundamentada do Juízo de 1º grau.” (STJ – RHC 118.854/SP – Relator: Ministro Ribeiro Dantas. Quinta Turma. Julgado em 20/02/2020).