Quebra de confiança: o furto qualificado no ambiente empresarial

No cotidiano do Direito Empresarial, infelizmente, são muito comuns casos de desvios de recursos feitos por pessoas que, de acordo com as vítimas, eram de extrema confiança em seus negócios. Um funcionário, um fornecedor ou até mesmo um cliente que se aproveita de uma estabelecida e sólida relação de credibilidade para realizar um furto. 

Essa quebra de confiança, se bem documentada, é passível de ser uma qualificadora do crime de furto (art. 155 do Código Penal), gerando uma pena bem maior do que em casos de furto simples. É o que se convencionou chamar de furto qualificado mediante abuso de confiança. Mas o que caracteriza esse abuso? O que faz com que esse delito receba essa qualificação? O que fazer se um caso como esse acontecer em sua empresa? 

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Imagens: Repdoução/Canva

Primeiramente, é importante conceituar o furto qualificado. O furto é o ato de “subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel”, como define o art. 155, com pena de um a quatro anos de reclusão, e multa. O Código Penal apresenta também algumas hipóteses que tornam o delito qualificado, aumentando a possível pena para dois a oito anos de reclusão, além de multa. 

O furto se torna qualificado se o ato for acompanhado com a destruição ou rompimento de obstáculo à subtração do objeto (como o arrombamento de uma porta, por exemplo); se houver uso de uma chave falsa para acessar o objeto; se o furto for realizado por duas ou mais pessoas; ou se houver o abuso de confiança. 

Por óbvio, nessa hipótese do abuso de confiança, é primário que exista uma relação sólida entre as partes, como a existente entre uma empresa e um funcionário, por exemplo. Esse é um requisito subjetivo para a qualificação do furto. Em segundo lugar, mas também primordial para qualificar o crime, é preciso cumprir o requisito objetivo: tinha o autor acesso ao objeto por causa dessa confiança entre as partes? O delito foi facilitado por essa relação? Se a resposta for sim, então caracteriza-se o furto qualificado por abuso de confiança. 

Exemplos

Como ficou demonstrado, é preciso provar a existência desse elo de confiança. Um exemplo prático e real é de um caso em que um funcionário furtou bens que estavam armazenados em uma sala da empresa em que trabalhava. Porém, a sala permanecia trancada. Não era dado ao funcionário o acesso a esse espaço. O entendimento dos magistrados, então, foi que não havia no caso em questão a relação de credibilidade entre as partes – vítima e réu. Assim, o acusado foi condenado apenas por furto simples. 

Uma outra situação, também real e noticiada nos meios de comunicação, foi a de uma funcionária de livraria que desviou R$ 2,7 milhões provenientes do benefício do vale-refeição. A autora, com duas décadas de serviços prestados à empresa, era a responsável direta por organizar o repasse desse benefício aos demais funcionários. Esse foi um dos elementos considerados pela Justiça para entender que havia a relação de confiança entre a empresa e a ré, e que esta relação foi fundamental para a execução do furto. Neste caso, a pessoa em questão foi condenada pelo crime de furto qualificado. 

Vale salientar que este delito não ocorre apenas em relações laborais. Não é o fato de ser empregado e cometer o furto que o faz ser qualificado. Mais uma vez reforçamos que é imperativa a existência de uma relação de confiança entre as partes e que esta confiança seja primordial para que o autor tenha acesso ao bem furtado. Assim, casos como o de uma pessoa que subtrai bens de um amigo, por exemplo, podem vir a ser considerados furto qualificado. 

Diferenças 

O furto qualificado mediante abuso de confiança se assemelha ao delito de apropriação indébita (art. 168), que consiste em “apropriar-se de coisa alheia móvel, de que tem a posse ou a detenção”. Ambos são crimes contra o patrimônio e que podem ocorrer dentro de empresas dos mais diversos portes. O que diferencia, então, um delito do outro? 

No caso do furto qualificado, o autor tem acesso ao objeto subtraído, mas não detém a posse. Por exemplo, um celular utilizado no escritório e que em determinado momento é levado arbitrariamente por alguém. Já no caso da apropriação indébita, o autor tem a posse do bem antes de praticar o crime. No mesmo exemplo do celular, imagine que a empresa cedeu ao funcionário a posse temporária do aparelho e, ao término do contrato de trabalho, não há devolutiva do item. Nesse caso, configura-se a apropriação. 

Fui vítima. E agora? 

O furto com qualificadora de abuso de confiança não é incomum, o que indica que é importante estar alerta. Claro, não estamos aqui querendo levar uma desconfiança ao ambiente de trabalho. Pelo contrário. Nossa proposta é fortalecer uma cultura baseada em processos de controle muito bem estruturados, a fim de melhorar a gestão, gerar um negócio mais sustentável e trazer segurança a todos, dando a devida direção aos trabalhadores. 

O acesso a informações sensíveis e também a contas bancárias ou bens de valor deve ser restrito e, principalmente, monitorado, além de sempre estar acompanhado de um verdadeiro duplo check. E, ainda, o corpo funcional deve ser treinado para identificar atividades suspeitas e para que tenham em mente os riscos penais desse tipo de ação.

Ao identificar um possível furto, o primeiro passo é procurar assistência jurídica. Leve a situação ao setor jurídico ou ao escritório de sua confiança. Com base nas informações preliminares, o criminalista será capaz de orientar as próximas ações: quais são as evidências disponíveis? Quais documentos precisam ser levantados? É melhor registrar um boletim de ocorrência ou uma notícia de crime? Essas e outras perguntas poderão ser respondidas por um profissional.

Somente a partir da análise técnica será possível afirmar se o delito identificado pode vir a ser considerado qualificado pelas autoridades de investigação. E, assim, empreender a melhor estratégia na busca por uma responsabilização e reparação do dano ocorrido. 

Referências

BRASIL. Art. 155 do Código Penal – Decreto Lei 2848/40. 1940. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm>  

BRASIL. Art. 168 do Código Penal – Decreto Lei 2848/40. 1940. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm>  

Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios – TJDFT. Acórdão nº 814102. 2014. Disponível em: <https://www.tjdft.jus.br/consultas/jurisprudencia/informativos/2014/informativo-de-jurisprudencia-n-o-289/furto-2013-afastamento-da-qualificadora-de-abuso-de-confianca

MIGALHAS. Funcionária é condenada por fraudar R$ 2,7 milhões em vale-refeição. 2022. Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/quentes/371320/funcionaria-e-condenada-por-fraudar-r-2-7-milhoes-em-vale-refeicao

NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado. 15a. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015.

PRADO, Luiz Regis. Comentários ao código penal. 11a ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017.

ZANELLA, Everton Luiz. Furto. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Direito Penal. Christiano Jorge Santos (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. Disponível em: <https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/432/edicao-1/furto