Inconsistências contábeis: há reflexos perante a lei penal?

Em agosto do ano passado, o executivo Sérgio Rial foi nomeado como futuro CEO das Lojas Americanas. O anúncio foi muito bem recebido pelo mercado e as ações da empresa, que acumulavam queda de 58% no ano, chegaram a subir mais de 20% no dia da notícia. Rial é um dos executivos mais bem quistos no mercado financeiro e, naturalmente, todos viram o fato com bons olhos. Seria um novo tempo para uma das principais redes varejistas do país? 

O que ninguém podia imaginar é que a passagem de Rial pelas Americanas não duraria nem sequer dez dias. O novo CEO revelou em fato relevante ter encontrado, em estimativa preliminar, “inconsistências contábeis” de R$ 20 bilhões. A notícia foi um choque para todo o mercado, gerou efeitos imediatos e, ainda, deve causar futuras consequências para investidores, fornecedores e trabalhadores. Mais de 16 mil fornecedores foram impactados diretamente. No fim das contas, a companhia anunciou dívida em torno de R$ 40 bilhões e entrou com pedido de recuperação judicial. 

O que aconteceu para que uma das maiores empresas do país chegasse a esse ponto sem que nenhuma auditoria, órgão estatal de controle ou as próprias lideranças percebessem a ida para o abismo? Muito se especulou sobre as razões e responsabilidades dessa crise, que já é uma das maiores já vistas no mercado brasileiro. Uma das principais razões, de acordo com os especialistas, foi o uso excessivo de uma operação chamada de risco sacado. Essa é uma prática comum no varejo, que consiste na antecipação de valores junto a um banco para o pagamento de fornecedores, ficando a empresa em dívida com a instituição financeira. A questão é que, aparentemente, a contabilidade dessas operações não tinha a transparência necessária, mascarando um rombo que só crescia.

Ainda há muito o que se desvendar antes de, definitivamente, entendermos tudo o que envolve a crise das Americanas. Mas uma pergunta ficou na mente dos milhões de consumidores e investidores: será que há algum crime escondido em toda essa situação? 

O status do caso Americanas

O primeiro ponto e o mais importante é: tudo deve ser investigado e, aqueles que forem formalmente acusados de algo, devem ter garantidos seus direitos de acesso à ampla defesa. Dito isso, podemos perceber que há, pelo menos, uma desconfiança de que delitos podem ter sido cometidos por anos até a descoberta do rombo. 

Não à toa, está em andamento uma força-tarefa que envolve o Ministério Público Federal, a Polícia Federal e a Comissão de Valores Mobiliários, que já interrogou funcionários, ex-funcionários e executivos, incluindo o ex-CEO Miguel Gutierrez, que esteve à frente da rede por duas décadas e é o maior acionista individual das Americanas, com exceção do “trio 3G” (Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Beto Sicupira). 

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Enquanto as investigações prosseguem, a recuperação judicial da Americanas já está em andamento. E, em meio a tudo isso, ainda há outros desafios paralelos como, por exemplo, o pedido de instauração de CPI protocolado por parlamentares da Câmara dos Deputados e decisões judiciais que dificultam algumas tentativas de sanar certas dívidas. Um exemplo disso aconteceu em março, quando a empresa foi impedida judicialmente de realizar o pagamento de R$ 192 milhões em dívidas da Americanas a 1,3 mil credores, entre trabalhadores e pequenos e médios fornecedores. A decisão aconteceu em razão de um recurso do Banco Safra, também credor da companhia, que defendeu que o pagamento de credores só pode ocorrer depois que o plano de recuperação judicial seja aprovado em assembleia, conforme prevê a legislação (leia o nosso artigo sobre a Lei de Falências, publicado no mês passado). 

5 delitos possíveis após a descoberta de um rombo 

Para além da versão de que as operações de risco sacado são as principais responsáveis pela crise exposta nas Americanas, estão em curso investigações que visam verificar se, durante todos esses anos, houve o cometimento de crimes na gestão da empresa. Mas que tipo de crimes poderiam ter ocorrido em casos similares? 

Manipulação de mercado de capitais (art. 27-C da Lei 6.385/76)

A manipulação de mercado de capitais é qualquer operação ou manobra fraudulenta realizada com o objetivo de elevar, manter ou baixar a cotação, preço ou volume negociado de um valor mobiliário, seja para obter vantagens ou para prejudicar terceiros. Existem práticas diversas que se enquadram neste delito: 

  • Front running (muito similar ao delito de insider trading, em que se obtém vantagem a partir da obtenção ilegal de informações privilegiadas e antecipadas sobre a operação de determinada ação na bolsa);
  • Spoofing (manipular o preço de um ativo com o intuito de gerar uma liquidez artificial, obtendo lucros com a variação do preço);
  • Layering (ação coordenada entre vários grupos visando criar ofertas artificiais, também obtendo lucro através da manipulação de preços de ações).

Insider trading (art. 27-D da Lei 6.385/76)

No mesmo contexto do delito anterior, sendo também considerada uma manipulação do mercado de capitais, está o crime de insider trading. Imagine um executivo que tenha conhecimento prévio de informações que apontem de que a empresa da qual é acionista vai de mal a pior. Aproveitando que as ações no mercado financeiro estão em um preço razoável ou tiveram alta por alguma notícia positiva, ele se utiliza desse privilégio de conhecer fato relevante antes dos demais players do mercado para obter lucros. Isso é considerado crime financeiro, com pena de 1 a 5 anos de reclusão, e multa. Um dos motivos que levantaram suspeitas de que isso pode ter ocorrido no caso Americanas é o fato de que diretores da companhia venderam ações e levantaram quase R$ 250 milhões no segundo semestre de 2022.

Lavagem de dinheiro (Lei nº 9.613/1998)

A lavagem de dinheiro se materializa quando o autor oculta ou dissimula rendimentos provenientes de um delito anterior para que este montante passe a ser dinheiro legal. Desde 2012, qualquer crime ou contravenção penal que tenha fim a geração de valores ou bens ilícitos pode ser considerada infração anterior à lavagem  de dinheiro. Assim, no contexto corporativo, fraudes contábeis e outros crimes empresariais podem ter sido cometidos com a intenção de lavagem de capitais. 

Estelionato financeiro (art. 6 da Lei nº 7.492/1986)

De acordo com a legislação, induzir ou manter em erro sócios, investidores ou órgãos públicos escondendo informações ou prestando informações falsas relativas à operação e situação financeira de uma empresa é crime com pena de reclusão de 2 a 6 anos e multa. Esse delito está no rol de crimes contra o sistema financeiro nacional.

Associação criminosa (art. 288-A do CPP)

Muitas das fraudes e crimes empresariais são cometidos por um grupo organizado. Isso faz com que se caracterize o crime de associação criminosa. Esse delito acontece quando se organiza ou se faz parte de um grupo com o objetivo de cometer qualquer crime que esteja previsto no Código Penal.

Como combater? 

Muito temos falado sobre prevenção e gestão de riscos criminais no meio corporativo. E um dos pontos de alerta de toda essa história é entender como ninguém descobriu o que vinha acontecendo na gestão financeira da Americanas. Como os controles das operações falharam de forma tão drástica e por tanto tempo?

Em primeiro lugar, é preciso avaliar sob o ponto de vista interno. Será que os setores financeiros e contábeis da empresa apenas erraram? Eles sabiam o que acontecia? Não houve tentativa de frear? Será que esse fato era de conhecimento de poucas pessoas ou de muitas pessoas? São muitas perguntas que ainda não possuem respostas. 

Em segundo lugar vem as auditorias. Um caso como esse deixa um rastro de descrédito muito grande nas empresas do ramo. A empresa responsável por auditar as contas da Americanas, por exemplo, já foi alvo de algumas ações civis públicas, impetradas por acionistas minoritários e por entidades de classe. É preciso rever o papel das auditorias na garantia de transparência das grandes empresas. 

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Por fim, ainda temos a responsabilidade estatal. A Comissão de Valores Mobiliários foi negligente? A quantas anda a fiscalização dos órgãos públicos? 

É provável que o caso das Americanas seja responsável pela criação de novos mecanismos de controle. Por exemplo, a Lei 11.638 de 2007 determina que empresas consideradas de grande porte são obrigadas a contratar auditorias externas para auditar os demonstrativos contábeis. Uma segunda auditoria independente e até uma investigação interna podem deixar a análise dos dados contábeis mais robusta. Discussões legislativas também já estão sendo colocadas em debate, inclusive com possíveis alterações na Lei de Falências, com a sugestão de que o texto passe a distinguir gestões fraudulentas das crises econômicas geradas por outros fatores.

Gestão de crise

Outro ponto importante é o que fazer depois de deflagrados os problemas contábeis, financeiros e até criminais. A gestão de crise é fundamental para a mitigação ou o agravamento das adversidades. A demora do pronunciamento dos principais investidores da Americanas, por exemplo, causou mais desconfianças no mercado do que segurança, amplificando a já inevitável derrocada. Tratar a situação, não importa o quão grave seja, com transparência, agilidade e respeito aos investidores, empregados e credores, ainda é a melhor saída, inclusive do ponto de vista penal.

Os desdobramentos do caso Americanas ainda vão levar bastante tempo para serem completamente resolvidos e desde já nos deixam lições valiosas. Mas a crise da gigante varejista também deixou muitos questionamentos, principalmente em relação à responsabilização. Assim, a expectativa em torno do caso se situa em três pontos principais: se os credores irão se recuperar dos impactos; se a Americanas conseguirá se recuperar; e se a Justiça vai conseguir julgar os responsáveis. Ficaremos de olho nos próximos acontecimentos dessa história. 

Referências:

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BRASIL. Lei nº 7.492/1986. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7492.htm>

BRASIL. Lei nº 9.613/1998. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9613.htm>

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MOREIRA, Talita. Conversas com diretores da Americanas levaram ao fato relevante, diz Sérgio Rial. Valor Investe. Valor Econômico. 2023. Disponível em: <https://valorinveste.globo.com/mercados/renda-variavel/empresas/noticia/2023/01/17/conversas-com-diretores-da-americanas-levaram-ao-fato-relevante-diz-sergio-rial.ghtml>

NERY, Erick Matheus. Americanas (AMER3): “Elo perdido” da crise, ex-CEO Miguel Gutierrez depõe na CVM. Suno. 2023. Disponível em: <https://www.suno.com.br/noticias/americanas-amer3-ex-ceo-miguel-gutierrez-cvm/>

NUCCI, Guilherme de Souza Nucci. Leis penais e processuais penais comentadas. Volume 2. 8a ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014.

OHANA, Victor. Justiça do Rio derruba sigilos de informações sobre o caso Americanas. Carta Capital. 2023. Disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/justica/justica-do-rio-derruba-sigilos-de-informacoes-sobre-o-caso-americanas/>

POLITO, Reinaldo. A Americanas escandaliza o mercado com rombo camuflado de R$ 20 bilhões. UOL. 2023. Disponível em: <https://economia.uol.com.br/blogs-e-colunas/coluna/reinaldo-polito/2023/01/17/a-americanas-escandaliza-o-mercado-com-rombo-camuflado-de-r-20-bilhoes.htm>

REUTERS. Ex-presidente da Americanas Miguel Gutierrez presta depoimento na CVM, diz fonte. Investing.com. 2023. Disponível em: <https://br.investing.com/news/stock-market-news/expresidente-da-americanas-miguel-gutierrez-presta-depoimento-na-cvm-diz-fonte-1094955>

RIPARDO, Sérgio. Ex-CEO do Santander, Sergio Rial vai comandar Americanas a partir de 2023. Bloomberg Linea. 2022. Disponível em: <https://www.bloomberglinea.com.br/2022/08/19/ex-ceo-do-santander-sergio-rial-vai-comandar-americanas-a-partir-de-2023/>

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