Por Daniel Laufer, Maria Francisca Accioly e Gabriel Kuczuvei
No Tema 990/RG, o Supremo Tribunal Federal (STF) declarou a constitucionalidade do compartilhamento dos relatórios de inteligência financeira da UIF (Unidade de Inteligência Financeira) e da íntegra do procedimento fiscalizatório da Receita Federal aos órgãos de persecução penal para fins criminais, sem a necessidade de prévia autorização judicial.
E foi com base neste tema que, recentemente, a 1ª Turma do STF decidiu, à unanimidade, por reformar a decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) nos Autos de Recurso Ordinário em Habeas Corpus (RHC) 147.707/PA que tinha, por sua vez, reconhecido a ilicitude dos relatórios de investigação financeira solicitados pela autoridade policial diretamente ao COAF (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) sem autorização judicial.
Segundo o entendimento do relator da Reclamação (RCL) 61.944/PA, Ministro Cristiano Zanin, o STJ teria incorrido em equívoco interpretativo, pois os fundamentos elencados no RE 1.055.941, que originaram o Tema 990/RG, claramente autorizaram solicitações de compartilhamento de informações à UIF diretamente pelo órgão de persecução. Tudo porque haveria, “em termos de inteligência financeira, um padrão internacional de combate à lavagem de dinheiro, evasão de divisas, terrorismo e tráfico de drogas” que foi “desconsiderado pela decisão da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça”.
Dentre os argumentos vertidos pelo nobre Relator está o Decreto 8.799/2016, pelo qual o Estado brasileiro firmou compromisso no Conselho de Segurança das Nações Unidas no sentido de seguir as recomendações do Grupo de Ação Financeira Internacional (GAFI) no combate à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo.
Ademais, por meio das recomendações do GAFI, os países adeptos se comprometeram a “assegurar que as leis de sigilo das instituições financeiras não inibam a implementação das recomendações do GAFI” (recomendação 09) e que a unidade de inteligência financeira deveria “ser capaz de disseminar, espontaneamente e a pedidos, informações e os resultados de suas análises para as autoridades competentes relevantes” com a obrigatoriedade de utilizar “canais dedicados, seguros e protegidos para tal disseminação” (recomendação 29.5).
Por estas questões, a 1ª Turma do STF julgou que a interpretação dada pelo STJ culmina, até mesmo, em “graves implicações de direito internacional” contra o Brasil, haja vista a violação do compromisso firmado com o Conselho de Segurança da ONU, nos termos do Decreto 8.799/2016.
Ademais, o Ministro Cristiano Zanin reforçou o teor do julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1.055.941/SP – leading case do Tema 990 – , no que se refere à troca de informações entre os órgãos de persecução penal com a UIF e a Receita Federal. Assim, foi dito no voto condutor que a transmissão de informações não objetivaria franquear acesso a dados e informações sensíveis dos investigados deliberadamente, ao sufrágio de direitos e garantias fundamentais previstos no artigo 5º, incisos X e XII, da Constituição da República. Ao contrário. Na hipótese de os órgãos de persecução requererem dados fiscais e/ou bancários pormenorizados, permanece a obrigatoriedade e a necessidade de intervenção judicial adequada.
A corroborar, o Ministro Rogério Schietti, do STJ, que foi voto-vencido no acórdão recorrido e reformado (RHC 147.707/PA) , observou que “diversamente do que acontece com os dados fiscais ou bancários, merece ser destacado que o Coaf não tem acesso direto a esses dados financeiros das pessoas que são alvos de comunicações suspeitas, mas apenas as recebe, examina e dissemina na forma de relatórios de inteligência financeira, o qual, na maioria dos casos, não revela dados específicos e particulares protegidos pelo sigilo.”
Diga-se, ainda, que a 1ª Turma do STF veio a reiterar a constitucionalidade do “compartilhamento de dados entre o Coaf e as autoridades de persecução penal, sem necessidade de prévia autorização judicial, também em casos em que o relatório tenha sido solicitado pela autoridade.”
Ainda que de fato exista uma certa obrigatoriedade de se dar autonomia ao COAF para a comunicação de operações suspeitas aos órgãos competentes, a exemplo do que acontece nos Estados Unidos, Reino Unido, França e outros países, é importante abordar este tema com a devida cautela e profundidade, notadamente no que se refere aos relatórios produzidos a partir de requisições dos órgãos investigatórios, leia-se Ministério Público e Polícia Judiciária.
A discussão, portanto, não finalizou, sendo imperioso o debate acerca do controle e fiscalização, justamente para se aferir a lisura e a imparcialidade dos órgãos de persecução penal. Eis as perguntas ainda sem resposta: Quais os critérios para as requisições? Que tipo de investigação está em andamento e em que fase dela a requisição foi realizada? Os relatórios obtidos junto ao COAF serão compartilhados com a Defesa, nos moldes da Súmula Vinculante 14 do STF sem a criação dos costumeiros óbices burocráticos?
O objetivo do Poder Judiciário, ao que se espera, será sempre o de respeitar direitos e garantias individuais, de modo a se evitar que informações bancárias e fiscais, anteriormente só acessíveis a partir de decisão judicial, sejam acessadas como primeira medida investigativa, abrindo-se assim espaço ao arbítrio e à ilegalidade (preocupação já demonstrada pelo Ministro Gilmar Mendes ao se referir à fishing expedition quando do julgamento do RE 1.055.941).