Um ano das alterações legislativas decorrentes do “pacote anticrime”

A pandemia do novo coronavírus, responsável pelo fechamento dos foros e tribunais, também colaborou para que não tenhamos percebido que as alterações processuais penais advindas do denominado “pacote anticrime” já vigorem há mais de um ano.

Não que a ausência do coronavírus trouxesse impactos totalmente diversos aos institutos, mas não há como desconsiderar o vetor “coronavírus” e consequente diminuição do número de casos instruídos e julgados em 1ª instância.

Mesmo assim, gostaríamos de passar nossas primeiras impressões sobre algumas das alterações geradas a partir da Lei 13.964/2019.

O primeiro ano de vigência da nova ferramenta do processo penal não adversarial intitulada “acordo de não persecução penal”, ao menos no que toca ao por nós vivenciado, foi positivo. A natureza híbrida foi em grande parte reconhecida e com isso o instituto foi aplicado para casos com denúncia já recebida e para outros com sentença já proferida. Os Tribunais foram rápidos, a exemplo do TJPR e do TRF4, ao criar mecanismos para permitir ao Ministério Público em 1º grau analisar a propositura ou não dos acordos. O julgamento do Habeas Corpus 185913/DF já afetado ao plenário do STF, cuja relatoria é do Min. Gilmar Mendes, certamente lançará ainda mais luz, talvez em sentido definitivo, sobre a retroatividade da norma inserida no artigo 28-A, CPP, e ao requisito da confissão, este seguramente um dos pontos críticos ao instituto.

Já a alteração que tornou o crime de estelionato condicionado à representação conta com interpretações diversas por parte dos Tribunais Superiores. Quinta e Sexta Turma do STJ divergem francamente sobre a orientação a ser dada aos jurisdicionados (se a norma retroage ou não) e no STF há importante julgado de lavra do Ministro Alexandre de Moraes no qual se reconheceu ser inaplicável a retroatividade da exigência da representação para processos com denúncia já oferecida anteriormente à entrada em vigor da Lei 13.964/2019. Independente da orientação a ser firmada pelas Cortes Superiores sobre a retroatividade ou não do dispositivo assentado no artigo 171, §5º, CP, a realidade é que o cidadão, quanto mais a vítima, precisa desta definição com urgência. Prover segurança jurídica é um dever do Estado, quanto mais quando se trata de outorgar segurança jurídica a um dispositivo que sequer deveria ter sido criado. Outros tipos penais minimamente similares (v.g., o furto mediante fraude e a apropriação indébita), permanecem sem a necessidade da representação da vítima e o seu processamento continua sem qualquer sobressalto ou prejuízo.

Impedir as prisões preventivas de ofício foi importante e por demais benéfica alteração legislativa e valiosas orientações jurisprudenciais advieram do Supremo Tribunal Federal (HC 188.888/MG e HC 193.053/MG) dando sustentação à norma do artigo 311, CPP. Todavia, é salutar a sociedade manter-se alerta, pois não se trata de interpretação pacífica, a exemplo de precedentes oriundos do STJ (HC 605.305/MG) que reconheceram ser, embora bem clara a redação normativa, lícita e viável a decretação da prisão preventiva sem requerimento do Ministério Público ou da autoridade policial. Se antes mesmo da alteração legislativa a prisão processual decretada de ofício já merecia severas críticas, o que dizer de decisões que literalmente descumprem a legislação?

Por fim, ao contrário do que ocorreu quanto às prisões de ofício, no tocante à norma trazida no parágrafo único do artigo 316, CPP, que versa sobre a necessidade de revisão da prisão preventiva a cada 90 dias, a orientação do STF, respeitosamente, deixou a desejar. Sob o pano de fundo da soltura de um acusado de alcunha “André do Rap” e com os ânimos à flor da pele, o STF lançou interpretação nada condizente com o texto legal. Tornar a prisão ilegal apenas após provocação por parte do defensor – como se Brasil afora todos os acusados tivessem sua defesa técnica assegurada e materialmente realizada – resulta em impedir os efeitos benéficos pretendidos pelo pacote anticrime e, ademais, configura orientação contrária à lei.

A verdade é que nunca será tarde para aprimorar a legislação penal de modo a torná-la mais consentânea com as garantias constitucionais. Contudo, a orientação vinda dos Tribunais é o que dará concretude a tais direitos e somente através dela é que a matriz acusatória será efetivamente respeitada. O recesso dos Tribunais Superiores recém terminou. Que o ano de 2021 nos brinde com arestos firmes, definitivos, justos e libertários.

Daniel Laufer, Doutor em Direito (PUCSP) e advogado criminalista

Maria Francisca Accioly, Mestre em Direito (UFPR) e advogada criminalista