Habeas corpus, instrumento fundamental do Estado Democrático de Direito

Um dos primeiros e mais importantes artigos da Constituição Cidadã de 1988 é o artigo 5º. Nele está exposto: “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (…)”.

Podemos captar deste trecho que, entre alguns dos direitos invioláveis ao cidadão brasileiro, está a liberdade. Este, que é um dos valores primários de qualquer sociedade democrática, precisa de instrumentos de proteção. O mais importante deles e que pode ser considerado como um dos muitos pilares de sustentação de um Estado Democrático de Direito é justamente o tema principal deste artigo: o habeas corpus.

O termo em latim (que significa “que tenhas o corpo”) é muito conhecido pela população em geral, afinal, é comum que seja citado em reportagens no noticiário, naturalmente relacionadas a prisões de grande repercussão. Mas raramente há uma explicação popular sobre o que de fato significa o habeas corpus, gerando um entendimento nebuloso para a maioria dos brasileiros. Um direito de tanto valor não deveria ser mais difundido? 

O conceito de habeas corpus

Em uma rápida contextualização histórica, o habeas corpus, criação inglesa, passou a ser instituído em nosso país a partir de 1821, ainda na época do Brasil-Império. O HC seguiu tendo papel extremamente relevante após a formação da República brasileira e passou por um período de suspensão com o AI-5, o Ato Inconstitucional nº 5, imposto pela Ditadura Militar no final dos anos 1960.

Com o retorno de um regime democrático e a realização da Constituinte, o habeas corpus foi formalizado na nova Constituição no inciso LXVIII do mesmo art. 5º citado anteriormente: “conceder-se-á habeas-corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder”. 

Na mesma linha, o Código de Processo Penal define em seu artigo 647 que “dar-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar na iminência de sofrer violência ou coação ilegal na sua liberdade de ir e vir, salvo nos casos de punição disciplinar”. O CPP, em todo o Capítulo X, também estabelece uma série de regramentos em torno do instrumento. 

Em outras palavras e de maneira mais direta, o habeas corpus é a garantia constitucional de proteção à liberdade de qualquer cidadão. O HC tem por função proteger a liberdade de ir e vir, seja na ocasião de uma prisão ilegal (habeas corpus liberatório) ou na iminência de que sua liberdade seja ameaçada por abuso de poder ou qualquer ato ilegal (habeas corpus preventivo). 

Outro ponto fundamental para compreender o habeas corpus é que ele deve ser julgado pela instância superior àquela que determinou a coação. Por exemplo, se a prisão ilegal for determinada por um juiz federal de primeira instância, o HC será julgado pelo TRF (Tribunal Regional Federal). Se a coação for cometida pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), o HC será julgado pelo STF (Supremo Tribunal Federal), a máxima corte brasileira. 

Um fator que muitos talvez não saibam é que o habeas corpus pode ser pedido por qualquer cidadão. No entanto, é amplamente recomendado que seja procurada uma assistência jurídica para a realização do mesmo. 

Quando a ação do Estado é considerada ilegal? 

O Código de Processo Penal apresenta no art. 648 as razões para considerar a coação do Estado ilegal:

I – quando não houver justa causa;
II – quando alguém estiver preso por mais tempo do que determina a lei;
III – quando quem ordenar a coação não tiver competência para fazê-lo;
IV – quando houver cessado o motivo que autorizou a coação;
V – quando não for alguém admitido a prestar fiança, nos casos em que a lei a autoriza;
VI – quando o processo for manifestamente nulo;
VII – quando extinta a punibilidade.

Um exemplo muito comum de ilegalidade é quando um cidadão tem imposta a prisão temporária. Como o próprio nome diz, há um prazo para que esta pessoa seja mantida em cárcere. Ultrapassado este prazo, caso o cidadão não tenha sido solto, o advogado entrará com um pedido de expedição de alvará de soltura. Em uma situação de que este alvará seja negado, o habeas corpus pode ser solicitado com base na tese de “excesso de prazo”, estipulado no inciso II. 

Efeitos e importância

Concedido o habeas corpus por autoridade judiciária competente, os efeitos (previstos no art. 660 do CPP) são imediatos. Ou seja, se a pessoa solicitante do HC estiver presa, será posta em liberdade. No caso de um habeas corpus preventivo, que é quando o solicitante está solto mas com sua liberdade ameaçada, este recebe salvo-conduto, que é uma garantia de que não terá sua liberdade restrita nos termos da decisão.

Anteriormente, pontuamos a divulgação midiática da concessão de habeas corpus. De modo geral, essa exposição acontece somente em casos de repercussão, como quando um político preso aciona esse direito, por exemplo. O que acontece na opinião pública? Cria-se uma percepção de que o habeas corpus é uma ferramenta de impunidade, o que é um grande erro. Lembre-se, um HC é concedido em caso de uma arbitrariedade que deve estar muito bem fundamentada e que ainda passará pela decisão de um juiz competente. 

O principal papel do habeas corpus, como destacamos, é a proteção da liberdade do cidadão mas, para além disso, é uma forma de coibir os abusos por parte de agentes do Estado e o respeito ao devido processo penal. A existência do HC como instrumento processual é inerente a um país democrático como o Brasil. 

Imagens: Reprodução/Canva.

Referências:

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Constituição Federal de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>

COSTA, Julio Souza Marson Madeira e DA SILVA, Matheus Silveira. Inciso LXVIII – Habeas Corpus (HC). Série Artigo Quinto. Politize! 2020. Disponível em: <https://www.politize.com.br/artigo-5/artigo-5-habeas-corpus/#:~:text=O%20inciso%20LXVIII%20do%20Artigo,do%20direito%20individual%20%C3%A0%20liberdade

Decreto-Lei nº 3.689/41. Código de Processo Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689compilado.htm>

NOGUEIRA, Rafael. A coação ilegal e o Habeas Corpus. Direito Diário. 2018. Disponível em: <https://direitodiario.com.br/coacao-ilegal-habeas-corpus/>

PÁDUA, Gabriela Mosciaro. Habeas corpus: banalização do seu uso ou democratização do processo penal? Conteúdo Jurídico. 2018. Disponível em: <http://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/51202/habeas-corpus-banalizacao-do-seu-uso-ou-democratizacao-do-processo-penal>

URBANSKI, Rodrigo. A função social do habeas corpus. Canal Ciências Criminais. 2020. Disponível em: <https://canalcienciascriminais.jusbrasil.com.br/artigos/745087195/a-funcao-social-do-habeas-corpus/amp>