Feminicídio e o Tribunal do Júri: os desafios na defesa do interesse das vítimas

Como vocês já devem saber, o trabalho do advogado criminalista não se limita apenas a defender os direitos de acusados – embora essa seja uma atuação primordial dessa carreira. Existem muitos caminhos diferentes no cotidiano do criminalista e já falamos sobre isso no artigo “O outro lado da advocacia criminal”.

A Accioly, Laufer Sociedade de Advogados é um escritório especializado no Direito Penal Econômico. Na maior parte do tempo, nos dedicamos à função primária do advogado criminalista, além de prestar consultoria preventiva em diversas áreas econômicas. Porém, nós decidimos também manter um trabalho sob outro viés: na defesa dos direitos de vítimas, em especial das mulheres atingidas pela violência. Trabalhar em casos de feminicídio ao lado da família da vítima é uma missão que assumimos de maneira institucional. Entendemos que é importante levarmos a nossa expertise para casos que envolvem situações que atingem uma parcela significativa da sociedade.

E, claro, como é possível imaginar, existem muitos desafios em casos de tamanha complexidade, que envolvem o bem jurídico mais importante para todos nós, que é a vida. Além do preparo técnico-jurídico, é necessário ir além e estar pronto para a carga emocional de todo o processo.

Preparação

Apesar das particularidades que o crime de feminicídio carrega, ao receber a missão de defender os direitos dos familiares da vítima, a partir da posição de assistência da acusação, nossa atuação funciona de maneira muito parecida a qualquer outro caso. Durante a investigação ou se a atuação se der perante a primeira instância, buscamos entender a história em todos os seus detalhes. Entender o caso, amealhar o maior número de informações e documentos possíveis e compreender as ações tomadas até aquele momento pelas autoridades de investigação e pela Justiça.

É ideal assumir o caso desde o inquérito, pois assim o advogado vai construindo suas estratégias de forma mais robusta. Claro, nem sempre é possível. Existem situações em que a entrada de uma equipe de advogados acontece anos depois do crime. Afinal, a entrada do assistente de acusação pode acontecer em qualquer momento do processo anterior ao trânsito em julgado. Aqui mesmo no escritório temos exemplos de casos assim, em que assumimos a assistência da acusação em meio a um longo processo. Isso gera um desafio de se colocar a par de tudo o que foi feito até então e entender o que é necessário fazer a partir daquele momento.

É importante que se diga que não há um roteiro fixo de estratégias processuais em casos de feminicídio. Cada caso oferece elementos distintos e que possibilitam ou impedem determinadas estratégias. A experiência conta muito. Quanto mais casos você trabalha, mais se desenvolve um tipo de feeling em torno das iniciativas que o advogado deve tomar.

Um aspecto importante em casos de feminicídio é estreitar o laço com a figura da vítima, com seus familiares e com o contexto anterior ao crime. A partir do conhecimento de toda essa estrutura de relacionamento, é possível traçar estratégias que subsidiem a acusação.

Outro relacionamento importante ao assistente de acusação é junto ao Ministério Público. Quando você está trabalhando pela vítima ao lado das autoridades que estão investigando ou estão acusando, você tem que mostrar que está ali para ajudar e não tumultuar. O criminalista não é um protagonista – nem mesmo quando está em defesa dos réus. Nosso papel é agregar de maneira inteligente ao conjunto probatório da parte acusadora.

Em frente aos jurados

Embora a participação do assistente de acusação seja auxiliar a acusação, ele pode fazer muito durante o Tribunal do Júri. O assistente pode se manifestar ao longo de toda sessão plenária, arguir testemunhas, acusados e informantes, intervir, pedir pela ordem, etc. Durante os debates orais, o tempo dedicado ao assistente não é limitado pela Lei e, dentro do tempo permitido ao Ministério Público, é acordada a situação mais adequada.

O criminalista, tanto o defensor quanto o que eventualmente está como assistente de acusação, precisa estar preparado para exaustivas horas de trabalho. Apenas os debates costumam ocupar cerca de 5 horas em casos complexos, excetuando as paradas para descanso.

Frente a frente com os jurados, temos que lembrar que, embora eles tenham um grande poder nas mãos, estamos falando de pessoas leigas tecnicamente. São representantes da sociedade, diversos, e que podem refletir diferentes formas de pensar e entender o que é justo ou não. Por isso é preciso ser claro, incisivo e ter em mente que os indícios nem sempre são suficientes. A narrativa também pode ser decisiva.

Um exemplo que podemos trazer é o da tese de defesa da honra. Essa é uma tese que sempre foi utilizada e, em alguns casos, foi até vencedora. Até certa altura, existia uma cultura na defesa do acusado de inferir que ele agrediu o bem jurídico “vida” para defender o bem jurídico “honra”. Desde 2021, o uso desse argumento foi suspenso liminarmente pelo Supremo Tribunal Federal e recentemente foi considerado inconstitucional pela corte. Ainda assim, advogados muito hábeis podem ser capazes de usar esse argumento disfarçadamente, imputando à vítima uma “culpa comportamental”. Como se ela tivesse sido vítima dela mesmo e de suas ações, e não da agressividade do autor do delito. Esse desafio imposto pelo duelo entre tese de acusação e tese defensiva é inerente ao Tribunal do Júri. E exige preparo à exaustão.

Além da oratória, elementos visuais também podem ser relevantes. Fotos pessoais e vídeos que contextualizam a personalidade da vítima e sua respectiva relação com o autor do crime podem ser importantes no momento do júri, em que pessoas alheias a toda a história ficam responsáveis por julgar um caso. Diante do magistrado e do corpo de jurados, cabe a nós ser uma voz da parte ofendida e demonstrar a credibilidade e verossimilhança da tese acusatória.

Algo a se destacar, também, é o respeito pelos profissionais que estão do lado oposto. A formação criminal é muito importante por nos trazer essa visão do direito inegociável de ampla defesa. Como já registramos em outras oportunidades, o advogado criminalista é um defensor de direitos – seja do acusado ou das vítimas. Temos que lembrar que estando de um lado ou de outro, estamos trabalhando com base em preceitos éticos e morais e em toda a base jurídica à nossa disposição.