Eleições, Direito Penal e prevenção de crimes

Às vésperas de mais uma eleição geral no Brasil (a nona, desde a Constituição de 88), se torna inevitável que o processo político seja o centro das atenções e das conversas – no trabalho, no elevador, na vizinhança de casa ou nas redes sociais. E, naturalmente, o Direito tem importante papel na realização de um pleito confiável e que siga as regras constitucionais. Afinal, há toda uma especificidade jurídica relativa ao processo eleitoral.

O Direito Eleitoral tem a característica de ser interdisciplinar e entre as áreas correlatas está o Direito Penal. Para além da atuação contenciosa, o Direito Penal Eleitoral também tem importância consultiva, não apenas na tomada de decisões de partidos e candidatos, mas também na prevenção de possíveis delitos eleitorais, que podem ser punidos com reclusão, multa e até mesmo com a perda da candidatura ou do mandato. Ou seja, a gestão de riscos criminais, comumente indicada para o setor privado, também deveria ser uma prioridade para aqueles que postulam um cargo na vida pública. 

Uma postura preventiva e a atuação do advogado criminalista nesta seara são tão importantes que a própria Justiça Eleitoral se une à classe com este intuito. Para as eleições deste ano, por exemplo, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e a Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (Abracrim) firmaram termo de colaboração para a campanha “Abracrim na Prevenção de Crimes Eleitorais – Juntos em Defesa da Democracia, Garantias Constitucionais e Prerrogativas Profissionais”.

Porém, antes de tratarmos sobre as possibilidades preventivas, vamos explicar brevemente sobre as idiossincrasias dos crimes eleitorais e do processo penal eleitoral. 

Sobre os crimes eleitorais

Em 2022, comemora-se a criação do primeiro Código Eleitoral Brasileiro, que inclusive estabeleceu o sufrágio feminino no país. Este regramento passou por atualização, como a ocorrida no ano de 1965 (Lei nº 4.737/65), que foi recepcionada pela Constituinte de 88, recebendo novas alterações a partir de outras legislações, como a Lei dos Partidos Políticos (Lei 9.095/96) e a Lei das Eleições (9.504/97), por exemplo.

Reprodução/Canva

Neste Código Eleitoral, além da definição de toda a estrutura de administração e de funcionamento dos processos eleitorais, como a votação e a apuração, estão previstas uma série de condutas delituosas específicas, voltadas não apenas a candidatos, mas também aos eleitores, cabos eleitorais, servidores etc. Há muitas críticas sobre a quantidade de “crimes” estabelecidos e, não à toa, já surgiram propostas de reformas do Código Eleitoral, em geral com o apoio de advogados criminalistas. Um dos argumentos é que muitas condutas tipificadas poderiam ser punidas com uma simples multa civil e que crimes mais graves, como o chamado “caixa dois”, não estariam bem atendidos pelo atual regramento eleitoral. 

Entre os crimes eleitorais mais comuns e conhecidos da população estão a compra de votos (com pena de reclusão de até quatro anos, multa e até mesmo cancelamento da candidatura ou perda de mandato), a famigerada boca de urna (com pena de detenção de seis meses a um ano, com prestação de serviços comunitários como alternativa e multa) e o uso da máquina pública em prol de um candidato, em geral, cometido por membros de um mandato em exercício (com pena de 15 dias a 6 meses de detenção e multa). 

O funcionamento do processo penal eleitoral

Como pudemos perceber, os crimes eleitorais estão dispostos em um dispositivo legal à parte do Código Penal. Logo, é de se imaginar que o julgamento desses delitos também aconteça de uma forma diferente da estabelecida pelo Código de Processo Penal, ainda que ele continue sendo explorado como lei subsidiária ou supletiva. O Processo Penal Eleitoral está constituído pelo Código Eleitoral, nas Disposições Penais, em seu Capítulo III. 

Em primeiro lugar, os delitos previstos no Código Eleitoral são de natureza de ação pública incondicionada. Ou seja, a responsabilidade da denúncia é do Ministério Público e independe de representação da vítima. Todo cidadão que souber ou presenciar um crime eleitoral deve fazer a comunicação a um juiz eleitoral, que por sua vez, irá encaminhar as informações ao MP, que tem dez dias para analisar o caso e encaminhar denúncia.

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Posterior a isso, o juiz competente vai providenciar o interrogatório para depoimento pessoal do acusado. Neste ato de instrução processual está respeitada a garantia constitucional de ampla defesa. Outro ponto é que, em conformidade com o CPP, estão fixados dois momentos para a análise do recebimento da denúncia, um antes e outro após a resposta preliminar à acusação. Assim, o interrogatório do acusado se torna o último ato da instrução processual.

A partir disso, o réu e sua defesa terão 10 dias para se defender e arrolar testemunhas. Depois do término das oitivas, das diligências e dos demais procedimentos que tenham sido requeridos pelo Ministério Público ou ordenados pelo juiz, são mais 5 dias de prazo para as alegações finais de ambas as partes do processo. 

Após esse prazo, os autos devem ser concluídos e entregues ao juiz responsável em 48 horas. Este, por sua vez, terá um prazo de mais dez dias para proferir a sentença. Outros dez dias estarão disponíveis à defesa para a interposição de recurso.

Outro aspecto singular é que crimes comuns, mas que estejam ligados diretamente com o processo eleitoral, devem ser julgados pela Justiça Eleitoral. Entre os principais exemplos de crimes conexos estão a corrupção e a lavagem de dinheiro. Neste ano, o Tribunal Superior Eleitoral ampliou o rol de crimes conexos com a publicação da Resolução 23.691/2022. A lista teve a adição dos seguintes crimes comuns conexos aos crimes eleitorais: peculato; concussão; advocacia administrativa; tráfico de influência; corrupção ativa e passiva; crimes contra o Sistema Financeiro Nacional; lavagem ou ocultação de bens, direitos ou valores; organização criminosa; associação criminosa; e crimes praticados por milícias privadas que abranjam mais de uma zona eleitoral.

O Direito Penal pode contribuir com a prevenção de crimes eleitorais? 

Sem dúvidas, a gestão de riscos criminais pode ser uma aliada para garantir a lisura da participação política de um partido ou de um candidato, seja no aspecto orientativo sobre as legislações que devem ser cumpridas quanto na questão analítica, tendo como exemplo as inúmeras documentações a serem  apresentadas à Justiça Eleitoral. 

Mais do que isso, a longo prazo, partidos e políticos eleitos poderiam colocar em suas agendas a criação de departamentos internos de gestão de riscos e boa governança. Atualmente, não há na legislação dispositivos que obriguem as legendas a manterem institutos de boas práticas, mas facilmente é uma situação que deveria ser implantada por iniciativa própria. Além de trazer óbvios benefícios ao partido em termos de imagem perante à opinião pública, a aplicação de uma gestão de riscos voltada aos segmentos eleitoral e penal do Direito seria uma ação importantíssima no combate a práticas delituosas e lesivas à democracia nacional. 

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Trazemos um exemplo bastante pertinente à realidade brasileira: as doações de campanha. Tivemos situações recentes de uma relação no mínimo suspeita entre doadores de campanha e candidatos. Qual seria o papel de uma gestão de riscos? Realizar uma diligência que analise as vultuosas doações. Outro exemplo? A gestão de riscos pode auxiliar na formação de mecanismos de auditoria e de canais de denúncia voltados aos filiados de determinada sigla. Como sempre destacamos, a atuação preventiva, de uma forma geral, traz benefícios econômicos e reputacionais.

Dessa forma, concluímos que o cometimento de crimes eleitorais ou de crimes conexos à questão eleitoral é uma afronta direta ao Estado Democrático de Direito que, por premissa, deve ser defendido arduamente por qualquer advogado criminalista – que também tem como dever salvaguardar o direito inviolável de ampla defesa. E parte dessa proteção à democracia está diretamente vinculada a uma visão preventiva sobre o processo eleitoral brasileiro. 

Referências:

BOTTINI, Pierpaolo e NEISSER, Fernando. A hora do Direito Penal Eleitoral. Poder 360. 2021. Disponível em: https://www.poder360.com.br/opiniao/a-hora-do-direito-penal-eleitoral-escrevem-pierpaolo-bottini-e-fernando-neisser/ 

FERNANDES, Leonardo de Medeiros. Crimes eleitorais. Disponível em: https://www.mpam.mp.br/attachments/article/3181/Crimes_Eleitorais_Por_Leonardo_Fernandes.pdf 

GONÇALVES, Luiz Carlos dos Santos. Precisamos de crimes eleitorais, mas não de tantos. GEN Jurídico – JusBrasil. 2021. Disponível em: https://genjuridico.jusbrasil.com.br/artigos/1201616913/precisamos-de-crimes-eleitorais-mas-nao-de-tantos 

Ministério Público do Paraná. Crimes eleitorais. Disponível em: https://site.mppr.mp.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=3225 

Tribunal Superior Eleitoral. Código Eleitoral Anotado e Legislação Complementar 2022.  15ª edição. Disponível em: https://www.tse.jus.br/hotsites/catalogo-publicacoes/pdf/codigo_eleitoral/codigo-eleitoral-e-legislacao-complementar-15-edicao-2022.pdf 

LEITE, Alaor; TEIXEIRA, Adriano (organizadores). Crime e política: corrupção, financiamento irregular de partidos políticos, caixa dois eleitoral e enriquecimento ilícito. São Paulo: FGV Editora, 2016.