O padrão de conduta do agressor e da vítima roteirizam os crimes de feminicidio

POR MARIA FRANCISCA ACCIOLY

Em nosso último artigo da série sobre feminicidio, abordo os padrões de conduta de vítima e agressor que criam o roteiro dessa tragédia diária no Brasil. Um feminicida, como já vimos nos artigos anteriores, apresenta um padrão de comportamento facilmente identificável. Sua conduta, por fim, é guiada justamente por esse comportamento.

O agressor sempre trará o enredo do amor e da proteção como premissa para suas agressões. Justificará também, oportunamente, quebra de confiança, desrespeito, ingratidão. É um misto de acusações que minam a autoestima da vítima, reduzindo sua autonomia, e minando sua funcionalidade social e profissional. Aos poucos a mulher vai submergindo em um jogo emocional pesado, difícil de ser identificado por ela em um primeiro momento. O agressor tentará sempre plantar um sentimento de culpa, um sentimento de equívoco. Fará com que a mulher torne-se refém emocional dele, construindo essa condição dia após dia, com sessões escalonadas de acusações, ofensas e depreciações ao trabalho, ao passado, a familiares e amigos da mulher.

As brigas se tornarão cada vez mais constantes. A intensidade das agressões aumentará. O que antes era ataque verbal e violência psicológica progride para violência física. A vítima então começa a sofrer coação e ameaça, torna-se em definitivo refém emocional do seu agressor. Nos momentos de calmaria, o agressor se tornará amoroso, dedicado e atencioso, demonstrando a mulher uma condição de mudança e plenitude. O período de ”paz” dura algumas semanas ou meses, porém, as agressões serão retomadas cedo ou tarde e com maior nível de raiva e violência, intensidade e frequência.

Conduta da vítima

Subjulgada e raptada emocionalmente pelo agressor, à mulher tende a viver uma dicotomia emocional. Embora avalie o contexto em que vive e considere a possibilidade de se afastar do companheiro que a agride, ainda assim permanece acreditando em uma mudança genuína. A ciência e a psicologia já estudam esse padrão de comportamento e reação. Exposta há muito tempo às violências físicas, psicológicas e emocionais, a vítima passa a desenvolver uma dependência emocional do seu agressor. Conhecida como a Síndrome de Estocolmo, esse fenômeno consiste na ideia da vítima de que é incapaz de sair ou resolver aquela situação, tendo sua vida e destino nas mãos do agressor. Com a oscilação entre momentos de ódio e amor, agressão e afeto, a mulher vai ficando confusa com seus sentimentos em relação ao parceiro. Desenvolve ódio, mas não se sente capaz de lidar com aquilo. Desenvolve afeto e empatia por tentar entender as razões que levam aquele homem a agir da forma que age e fazer o que faz. Procura explicações que justifiquem “o momento em que estão vivendo”.

Negação e omissão

A vítima de agressão, na maioria dos casos, não tem coragem de denunciar o parceiro violento. Entre as justificativas estão o sentimento de culpa, a expectativa de mudança e o medo de prejudicar o parceiro. Nega aos amigos e familiares que a situação esteja fora de controle e se omite diante dos pedidos de providências e conselhos de deixar o parceiro.

A conduta da vítima de total impotência diante da iminente ruína pelas mãos do seu companheiro e agressor é o estágio final do ciclo de agressões para muitas vítimas. O ciclo de agressões de violência tenderá a aumentar gradualmente com o tempo, ao ponto em que a mulher em seu limite tentará, por instinto de sobrevivência, reagir, revidar e se livrar do agressor e a  série de violência. Debilitada e vulnerável emocionalmente, enfrentará forte resistência vinda do outro lado e as agressões chegaram ao seu limite fatal. Muitas serão espancadas, coagidas, ameaçadas de morte. A essas, ainda restará uma última chance de sair daquela situação. A busca por ajuda será iminente e necessária, ao ponto da mulher em desespero, fugir e buscar refúgio na casa de familiares e amigos.

Acolhida e segura, a mulher buscará ajuda das autoridades, no entanto, o pedido de socorro, nem sempre é suficiente para que as agressões, perseguições e ameaças cessem. Comumente esses agressores insistem nas suas jornadas de violência e maus tratos, mudando a forma de agir, mas buscando sempre o mesmo resultado que é a submissão e a dominação total da mulher. Medidas protetivas impostas solucionam parte do problema, mas não inibem homens mais descontrolados e tomados pela raiva e o sentimento de rejeição. A permissividade involuntária da vítima (refém emocional do seu algoz) alimentou por longo tempo o sentimento de posse e poder do homem sob a mulher, o que desencadeia sentimentos de fúria, ataques de raiva. O resultado são longos períodos de perseguição, tormento e ameaças, quase sempre encerrados com a prisão do agressor.

Sem tempo

Infelizmente para centenas de vítimas o momento de decisão de basta demora a chegar, por vezes se torna tarde demais. Nas tentativas de romper com o agressor e findar o sofrimento e o cárcere, a mulher se torna vítima fatal do ódio do seu companheiro. Os assassinatos ocorrem quase sempre durante uma intensa discussão. As brigas que precedem um feminicídio são marcadas pela tentativa agônica e desesperada da mulher de se livrar de toda aquela condição a que foi exposta. Seu levante contra o agressor, sua postura decidida a romper, disparam gatilhos de ódio no homem e, consequentemente, ataques violentos de fúria. Mulheres são mortas em casa, asfixiadas, esfaqueadas, ou vítima de tiros. Em diversas situações, o agressor tenta dissimular sua morte com simulações de suicídio. Muitos jogam os corpos de suas vítimas pela janela dos apartamentos como se elas tivessem pulado. Outros ocultam os corpos em matagais, beiras de rodovia e locais de difícil acesso e depois argumentam que a companheira deixou a casa, ou saiu para trabalhar e nunca mais voltou.

As marcas de um feminicidio começam a ser impressas muito tempo antes dele acontecer. São cicatrizes discretas que vão se alastrando pela vida da vítima e aumentando com o tempo. É um crime silencioso, perigoso, sorrateiro. A dissimulação da realidade tanto de forma intencional do autor, quanto pela ação involuntária da vítima, é o fator mais perigoso. Ao longo dos quatro artigos que produzi aqui, revisitei memórias e casos que marcaram a minha carreira. Confesso que até hoje é difícil lidar com a crueldade humana, com a dor das famílias e com a forma com que mulheres são assassinadas. Reviver tantas informações procedentes de casos a que tive acesso, contato e atuação, me conduz a uma realidade que, embora verídica e cotidiana, está distante daquilo que idealizo como mundo para mim, para minha família, meus amigos e para as próximas gerações. É doloroso lidar com a morte, é difícil encarar a finitude humana por meios tão violentos.

A reflexão mais sincera e honesta que consigo fazer nessas últimas linhas é de que precisamos educar nossos jovens, meninos e meninas, para que possam crescer com empatia, respeito, equilíbrio e consciência. A boa conduta diante da vida começa em casa, vem do exemplo, do bom exemplo que podemos dar aos mais jovens. Nada está acima da preservação e do respeito à vida. Nada justifica a violência, o abuso, o ódio e a dominação.

A você que esteve comigo durante essas quatro semanas, obrigado pela leitura e pela atenção.