Uma abordagem crítica ao marco legal das criptomoedas

No último mês de abril, o Senado Federal aprovou o marco regulatório de criptomoedas. O texto substitutivo ao Projeto de Lei 4.401/2021 traz diretrizes para a “prestação de serviços de ativos virtuais” e regulamenta o funcionamento das empresas prestadoras desses serviços, as exchanges. Neste momento, a proposta está em fase de revisão pela Câmara dos Deputados e pode ser enviada à sanção nas próximas semanas.. 

A iniciativa de regulação do setor é considerada positiva de uma forma geral por especialistas em criptomoedas. Todavia,  além de possuir lacunas, há pontos no texto que atingem sobremaneira o princípio da proporcionalidade e a finalidade no uso da lei penal como, por exemplo, a criação de uma nova espécie de estelionato que, pelo simples fato de envolver operações com criptoativos, terá uma pena superior a do crime já em vigor. 

Para compreender melhor o que muda com o avanço desse projeto é preciso conhecer o panorama geral do cenário das criptomoedas no Brasil, a importância da correta regulamentação das empresas do segmento e os pontos de divergência em relação à proposta que tem avançado no país. 

Criptoativos e suas características

Antes de abordarmos a questão da futura regulamentação, é importante termos em conta o conceito de criptomoedas. Por definição, é uma moeda digital ou virtual que, a partir de um sistema eletrônico de pagamento baseado em criptografia, registra as transações e faz a emissão de novas unidades monetárias sem a validação de terceiros, como os bancos. 

A principal característica desse sistema é sua descentralização. Não há uma autoridade central de regulação e emissão, como o Banco Central, por exemplo. Além disso, todo esse mercado usa a criptografia como base. Ou seja, a existência dos criptoativos, suas transações e o registro dessas possuem uma avançada codificação que tem como função principal gerar segurança ao sistema. 

As criptomoedas surgiram no ano de 2008 e, de lá para cá, outros milhares de criptoativos foram surgindo. Nesse processo todo, também nasceram as corretoras de criptomoedas, também chamadas de exchanges, que oferecem aos usuários a possibilidade de adquirir e gerir os criptoativos, fazer transferências e, inclusive, trocar por moeda fiduciária.

Expansão

Esse mercado teve um acelerado crescimento desde sua criação, mas com especial ênfase nos últimos anos. Segundo a gestora de criptoativos Hashdex, só no Brasil houve um aumento de 1.266% no número de investidores no ano de 2021. No mundo todo, de acordo com um levantamento da Grayscale Investments LLC, mais da metade dos investidores atuais entraram no mundo dos criptoativos durante o ano passado. Nos Estados Unidos, por exemplo, o número de americanos que usaram as criptomoedas de alguma forma saltou de 8% para 21% nos últimos quatro anos, segundo uma pesquisa da rede de televisão NBC. 

Foto: Reprodução/Canva

Um outro ponto relevante que destaca essa expansão é o número de criptomoedas existentes. Há cerca de três anos, eram cerca de mil criptoativos diferentes disponíveis no mercado. Atualmente, este número já ultrapassa os 10 mil. Com esse crescimento exponencial, também ganharam força as fraudes e crimes realizados  em torno desse universo. 

Possibilidades criminosas

Embora seja considerado “impossível” hackear o blockchain, que é o sistema de registros que valida as transações, o surgimento de práticas ilícitas que usem as criptomoedas como meio são inevitáveis. 

O desvio de ativos digitais é uma das possibilidades. Apenas os dez principais casos de roubo de criptomoedas de 2021 para cá renderam a invasores um montante avaliado em US$ 2,4 bilhões, segundo a empresa especializada CipherTrace.

Os crimes relativos a esses ativos também são possíveis fora do ambiente virtual. Os criminosos usam as criptomoedas como chamariz para o cometimento de estelionato ou de “pirâmide financeira”. 

Vale salientar, porém, que, proporcionalmente, o número de crimes é baixo. De acordo com a mesma CipherTrace, em 2021, a atividade ilícita representou entre 0,10% a 0,15% da atividade geral do mercado cripto, tendo uma queda significativa em relação ao ano anterior (estimada de 0,62% a 0,65%). 

Regulamentação e seus desafios

O rápido crescimento do mercado de criptoativos, os valores envolvidos e o consequente surgimento de crimes relacionados às criptomoedas  evidenciaram a necessidade de algum nível de regulamentação, ainda que, por essência, a criptomoeda seja uma ideia disruptiva, independente e autorregulada. 

Em todo o mundo essa é uma discussão pertinente, e não seria diferente no Brasil.  Desde 2015, alguns projetos de Lei foram apresentados no intuito de oferecer  maior segurança jurídica a esse mercado. Mas apenas em 2021, com o PL 4.401, o tema avançou. 

O texto em trâmite define um ativo virtual como sendo “a representação digital de valor que pode ser negociada ou transferida por meios eletrônicos e utilizada para realização de pagamentos ou com propósito de investimento”. A proposta também aborda algumas diretrizes para as prestadoras de serviços de ativos virtuais, as corretoras de criptomoedas. 

Foto: Marina Ramos/Câmara dos Deputados

A aprovação do marco regulatório traz alguns pontos positivos de acordo com especialistas do setor, como a definição de licenças para o funcionamento das exchanges, facilitando ao usuário acesso a empresas que operam em um ambiente com algum nível de fiscalização, e o incentivo às operadoras com a redução integral (porém, temporária) da alíquota de tributos para importação, industrialização e comercialização de equipamentos de hardware e software utilizadas nas atividades de processamento, mineração e preservação de ativos virtuais, desde que observadas algumas regras. Outra questão benéfica é que a regulação deste mercado se traduz no atendimento de uma recomendação do GAFI (Grupo de Ação Financeira Internacional) para o combate ao crime de lavagem de dinheiro. 

Em contrapartida, há pontos do texto que são nebulosos, especialmente aqueles que interferem na esfera penal. No texto proposto, o Código Penal passaria a contar com uma nova figura típica no artigo 171-A: “fraude em prestação de serviços de ativos virtuais, valores mobiliários ou ativos financeiros”, com pena de dois a seis anos de reclusão, e multa, ampliando a punição já prevista para o crime de estelionato apenas pelo fato do criptoativo ser usado como meio. 

É importante salientar que já existem leis que criminalizam diversas condutas nas quais o uso de criptomoedas integra a prática criminosa, em maior ou menor grau, como, por exemplo,  a lavagem de dinheiro, o próprio estelionato, crimes contra o sistema financeiro nacional, entre outros. Além disso, o PL não define qual será a entidade responsável por regulamentar este mercado, deixando a responsabilidade ao Poder Executivo. 

Diante da notória e provável aprovação do marco legal dos criptoativos, temos como conclusão de que a nova legislação é importante, e traz aspectos positivos. Porém, o tema exige um maior estudo dos legisladores e uma ampla participação de operadores do Direito e de especialistas em criptomoedas, para que o texto não burocratize em demasia a operação de criptoativos, fundamentalmente descentralizada e autorregulada, nem ofenda indiscutíveis princípios penais, cuja observância é mais do que obrigatória. 

Referências:

ALVES. Paulo. “Bitcoin é legal? Saiba mais sobre a regulamentação das criptomoedas”. CNN Brasil. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/business/bitcoin-e-legal-saiba-mais-sobre-a-regulamentacao-das-criptomoedas/ 

BIASOLI, Marcelo. “Três tendências que vão impactar o mercado de criptomoedas”. Disponível em: https://einvestidor.estadao.com.br/colunas/marcelo-biasoli/3-tendencias-impactar-mercado-criptomoedas 

COGHLAN, Jesse. “Uso ilícito de criptomoedas diminui em comparação ao uso total, diz relatório”. Coin Telegraph. Disponível em: https://cointelegraph.com.br/news/illicit-crypto-usage-as-a-percent-of-total-usage-has-fallen-report 

DE OLIVEIRA, Isaac. “Fundos cripto: número de investidores cresce 1.266% no Brasil em 2021”. e-Investidor – Estadão. Disponível em: https://einvestidor.estadao.com.br/criptomoedas/investidores-fundo-criptomoedas-crescem-2021#:~:text=Investimentos%20em%20criptos%20saltaram%20455,ser%C3%A1%20vertiginoso%20tamb%C3%A9m%20em%202022  

Expert XP. “Criptoativos e regulação: confira a posição do Brasil e nossa visão sobre o tema”. Disponível em: https://conteudos.xpi.com.br/criptomoedas/regulacao-criptoativos-internacional/ 

GAGLIONI, Cesar. “Como é a proposta de criar um marco das criptomoedas no Brasil”. Nexo Jornal. Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2022/05/03/Como-%C3%A9-a-proposta-de-criar-um-marco-das-criptomoedas-no-Brasil 

InfoMoney. “Criptomoedas: Um guia para dar os primeiros passos com as moedas digitais”. Disponível em: https://www.infomoney.com.br/guias/criptomoedas/#guia-vantagens-e-riscos-investir-em-criptomoedas 

Kaspersky. “O que é criptomoeda e como funciona?”. Disponível em:  https://www.kaspersky.com.br/resource-center/definitions/what-is-cryptocurrency 

LONGO, Laelya. “Marco regulatório das criptomoedas traz mais segurança ao investidor, mas segue com lacunas”. Valor Investe. Disponível em: https://valorinveste.globo.com/mercados/cripto/noticia/2022/04/27/marco-regulatorio-das-criptomoedas-traz-mais-seguranca-ao-investidor-mas-segue-com-lacunas.ghtml 

Mercado Bitcoin. “O crescimento das criptomoedas entre duas Copas do Mundo”. Bloomberg Línea. Disponível em: https://www.bloomberglinea.com.br/2022/05/20/o-crescimento-das-criptomoedas-entre-duas-copas-do-mundo/ 

Senado Federal. “CAE vai analisar três projetos que criam marco regulatório das criptomoedas”. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2022/01/11/cae-vai-analisar-tres-projetos-que-criam-marco-regulatorio-das-criptomoedas 

Senado Federal. “Senado aprova mercado de criptomoedas com incentivo para energia renovável”. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2022/04/26/senado-aprova-mercado-de-criptomoedas-com-incentivo-para-energia-renovavel