Retroatividade da representação da vítima no estelionato pelo entendimento do STJ

Os crimes descritos no ordenamento jurídico penal brasileiro podem ser processados a partir de três realidades distintas: mediante ação penal pública incondicionada à representação, ação penal pública condicionada à representação da vítima ou à requisição do ministro da Justiça e ação penal privada.

Trata-se, em verdade, de uma escolha do legislador com base em políticas criminais.

Recentemente, com o advento da Lei Federal nº 13.964/2019 (pacote “anticrime”), o crime de estelionato (artigo 171 do Código Penal) passou a ser processado mediante a representação da vítima, pelo prazo de seis meses, sob pena de decadência (perda do direito de ingressar com a ação).

Em linhas práticas, o que antes era de incumbência irrestrita do Ministério Público (ou seja, de ação penal pública incondicionada) passou a ser regido pela vontade da vítima em querer ver o autor do fato processado pelo crime em questão. Não basta mais apenas a notícia da ocorrência do delito, mas, sim, a representação formal da vítima contra o noticiado à autoridade competente.

Nada obstante, essa nova vontade do Poder Legislativo abarcada pelo pacote “anticrime” traz à tona diversas discussões de naturezas material e processual, como, por exemplo, a retroatividade da norma penal.

Nesse sentido, sabe-se que sempre em que houver uma legislação mais benéfica em favor do réu, esta deverá retroagir para alcançar fatos posteriores a sua promulgação (inteligência do artigo 5º, inciso XL, da Constituição Federal de 1988).

Essa orientação constitucional ainda encontra resistência de acordo com a natureza da norma recém-criada. Ou seja, se a norma em questão for de natureza penal, esta deverá retroagir em benefício do réu, desde que mais benéfica (artigo 2º, parágrafo único, do Código Penal). Caso a norma seja de natureza processual, em razão da inexistência de previsão legal, não há de se falar automaticamente em retroatividade.

Logo, o cerne dessa questão reside na seguinte pergunta: o parágrafo 5º, do artigo 171, do Código Penal introduzido pela Lei Federal nº 13.964/2019 é norma de natureza penal ou processual?

De acordo com o recente entendimento do Superior Tribunal de Justiça, no âmbito do Habeas Corpus nº 583837, trata-se de norma cuja natureza jurídica é revestida de caráter misto, tanto penal, quanto processual penal. Confira-se:

“HABEAS CORPUS. PENAL E PROCESSUAL PENAL. PACOTE ANTICRIME. LEI N. 13.964/2019. § 5º DO ART. 171 DO CP. AÇÃO PENAL PÚBLICA CONDICIONADA À REPRESENTAÇÃO COMO REGRA. NOVA LEI MAIS BENÉFICA. RETROATIVIDADE. ART. 5º, XL, DA CF. APLICAÇÃO DO ART. 91 DA LEI N. 9.099/1995 POR ANALOGIA. 1. As normas que disciplinam a ação penal, mesmo aquelas constantes do Código de Processo Penal, são de natureza mista, regidas pelos cânones da retroatividade e da ultratividade benéficas, pois disciplinam o exercício da pretensão punitiva. 2. O processo penal tutela dois direitos de natureza pública: tanto os direitos fundamentais do acusado, voltados para a liberdade, quanto a pretensão punitiva. Não interessa ao Estado punir inocentes, tampouco absolver culpados, embora essa última solução se afigure menos danosa. 3. Não é possível conferir a essa norma, que inseriu condição de procedibilidade, um efeito de extinção de punibilidade, quando claramente o legislador não o pretendeu. 4. A retroação do § 5º do art. 171 do Código Penal alcança todos os processos em curso, ainda sem trânsito em julgado, sendo que essa não gera a extinção da punibilidade automática dos processos em curso, nos quais a vítima não tenha se manifestado favoravelmente à persecução penal. Aplicação do art. 91 da Lei n. 9.099/1995 por analogia. 5. O ato jurídico perfeito e a retroatividade da lei penal mais benéfica são direitos fundamentais de primeira geração, previstos nos incisos XXXVI e XL do art. 5º da Constituição Federal. Por se tratarem de direitos de origem liberal, concebidos no contexto das revoluções liberais, voltam-se ao Estado como limitadores de poder, impondo deveres de omissão, com o fim de garantir esferas de autonomia e de liberdade individual. Considerar o recebimento da denúncia como ato jurídico perfeito inverteria a natureza dos direitos fundamentais, visto que equivaleria a permitir que o Estado invocasse uma garantia fundamental frente a um cidadão. 6. Ordem parcialmente concedida, confirmando-se a liminar, para determinar a aplicação retroativa do § 5º do art. 171 do Código Penal, inserido pela Lei n 13.964/2019, devendo ser a vítima intimada para manifestar interesse na continuação da persecução penal em 30 dias, sob pena de decadência, em aplicação analógica do art 91 da Lei n. 9.099/1995.” (STJ – Habeas Corpus n] 583837. RELATOR: MINISTRO SEBASTIÃO REIS JÚNIOR. Julgado em 4 de agosto de 2020).

No entanto, consoante o voto do ministro relator, Sebastião Reis Júnior, mesmo que se confira o caráter de retroatividade da norma em favor do réu, esta não poderá ser interpretada como hipótese de abolitio criminis.

Já no âmbito do Supremo Tribunal Federal, o entendimento é de que a retroatividade do parágrafo 5º, do artigo 171, do Código Penal não deve ser aplicada para as hipóteses em que o Ministério Público tiver oferecido a denúncia antes da entrada em vigor da lei 13.964/19:

“HABEAS CORPUS. ESTELIONATO. AÇÃO PENAL PÚBLICA CONDICIONADA A PARTIR DA LEI N. 13.964/19 (“PACOTE ANTICRIME”). IRRETROATIVIDADE NAS HIPÓTESES DE OFERECIMENTO DA DENÚNICA JÁ REALIZADO. PRINCÍPIOS DA SEGURANÇA JURÍDICA E DA LEGALIDADE QUE DIRECIONAM A INTERPRETAÇÃO DA DISCIPLINA LEGAL APLICÁVEL. ATO JURÍDICO PERFEITO QUE OBSTACULIZA A INTERRUPÇÃO DA AÇÃO. AUSÊNCIA DE NORMA ESPECIAL A PREVER A NECESSIDADE DE REPRESENTAÇÃO SUPERVENIENTE. INEXISTÊNCIA DE ILEGALIDADE. HABEAS CORPUS INDEFERIDO. 1. Excepcionalmente, em face da singularidade da matéria, e de sua relevância, bem como da multiplicidade de habeas corpus sobre o mesmo tema e a necessidade de sua definição pela PRIMEIRA TURMA, fica superada a Súmula 691 e conhecida a presente impetração. 2. Em face da natureza mista (penal/processual) da norma prevista no §5º do artigo 171 do Código Penal, sua aplicação retroativa será obrigatória em todas as hipóteses onde ainda não tiver sido oferecida a denúncia pelo Ministério Público, independentemente do momento da prática da infração penal, nos termos do artigo 2º, do Código de Processo Penal, por tratar-se de verdadeira “condição de procedibilidade da ação penal” . 3. Inaplicável a retroatividade do §5º do artigo 171 do Código Penal, às hipóteses onde o Ministério Público tiver oferecido a denúncia antes da entrada em vigor da Lei 13.964/19; uma vez que, naquele momento a norma processual em vigor definia a ação para o delito de estelionato como pública incondicionada, não exigindo qualquer condição de procedibilidade para a instauração da persecução penal em juízo. 4.A nova legislação não prevê a manifestação da vítima como condição de prosseguibilidade quando já oferecida a denúncia pelo Ministério Público. 5. Inexistente, no caso concreto, de ilegalidade, constrangimento ilegal ou teratologia apta a justificar a excepcional concessão de Habeas Corpus. INDEFERIMENTO da ordem” (STF – Habeas Corpus nº 187.341. RELATOR: MIN. ALEXANDRE DE MORAES. Julgado em 13 de outubro de 2020).

Haja vista a duplicidade de interpretação acerca da natureza jurídica da exigência de representação da vítima no crime de estelionato, o momento exige prudência dos atores processuais, em especial da vítima, que, diante da incerteza, deve exercer o seu direito de representação para não arcar com o ônus de um futuro reconhecimento da decadência em seu desfavor.

Por Guilherme Luiz Meotti – Advogado no escritório Accioly, Laufer Sociedade de Advogados. Bacharel em Direito pela PUCPR. Especialista em Processo Penal pelo IBCCRIM – IDPEE Coimbra – Portugal. Membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCRIM.