Pornografia de vingança: prática criminosa se respalda na criminalização da vítima e na dificuldade da produção de provas contra o agressor

Por Maria Francisca Accioly

Uma garota de 21 anos conhece um jovem promissor e cordial. O encontro é viabilizado pela irmã da jovem, que faz ótimas referências do rapaz. Cinco meses depois do início do namoro, o casal rompe a relação. Dois meses depois a jovem descobre que fotos íntimas suas estão circulando em grupos de Whatsapp. Mesmo ciente da autoria do vazamento das imagens, a jovem não consegue reunir provas suficientes para denunciar o ex-namorado, que de maneira irônica ainda avisa que “as provas que ela acreditava ter seriam inconclusivas em um tribunal e ele a processaria em seguida por denunciação caluniosa”. Arrasada, a jovem desiste de tomar qualquer medida legal, restando apenas a devastação emocional e social causada pela vingança do namorado. 

A história narrada acima é real e fez parte da reportagem “Entenda o que é pornografia de vingança e saiba como denunciar”, produzida pelo Portal de Notícias R7. A abordagem, mais que oportuna, traz com preocupação o tema e as providências necessárias à vítima para que o crime e o criminoso não fiquem impunes. 

Digno de nota é o elevado índice de subnotificações dos crimes de vazamento de imagens íntimas sem consentimento da vítima. Ou seja, embora se tenha conhecimento do crime, a denúncia quase nunca é formalizada. Medo de criminalização, preconceito e a vergonha da exposição da intimidade encabeçam a lista de fatores que reduzem as chances do crime ser denunciado. 

O próprio termo “Pornografia de Vingança” é por si só um limitador de ação contra os criminosos. Partindo do princípio que se o crime é praticado por vingança, se pressupõe subentendesse que algo de muito grave a vítima fez contra o agressor. E tratando o tema como pornografia, a sociedade estigmatiza ainda mais a vítima. Portanto, a expressão “Pornografia de Vingança” por si só já colabora com a estigmatização da ofendida. 

No Rio Grande do Sul, o Grupo de Estudos em Criminologia Contemporânea monitora dados relativos a crimes de vazamento de imagens íntimas sem consentimento. Intitulado “Projeto Vazou”, a pesquisa mostra que apenas 58% das vítimas desse tipo de delito informaram a família e amigos a respeito dos vazamentos das imagens. Em 43% dos casos, a vítima acabou criminalizada em seu núcleo familiar e social. A pesquisa revelou que 80% das vítimas conheciam o autor dos vazamentos. Em 82% dos casos, a vítima teve ou ainda mantinha, na época da pesquisa, relação com o agressor. Em 60% dos casos, as imagens haviam sido produzidas de forma consensual. A pesquisa reuniu 141 vítimas de vazamento de imagens íntimas sem consentimento em todo o Brasil. 

Dados imprecisos 

A subnotificação dos casos gera um apagão de informações sobre o padrão desses crimes no país. Embora haja um esforço conjunto entre as forças de segurança e o Poder Judiciário para que a sociedade se mobilize no enfrentamento a essa prática criminosa, a criminalização da vítima, pautada em tabus sociais e morais, ainda é uma barreira a ser superada no combate a essa prática perversa e que traz graves consequências sociais e emocionais às vítimas. 

Sequelas emocionais 

Via de regra são as mulheres as vítimas desta prática delitiva. E a exposição da intimidade da mulher na internet, redes sociais e aplicativos de mensagens obviamente traz graves consequências a sua saúde mental. Dados da Iniciativa para Direitos Civis Cibernéticos mostram que 93% das vítimas admitiram ter tido sequelas emocionais após o vazamento das imagens. Em 51% dos casos, a vítima disse ter pensado em cometer suicídio. 

Lei e Justiça 

A Justiça não tapa os olhos a esse preocupante  problema que acomete nossa sociedade. Não bastassem todas as formas criminosas e cruéis já existentes para maltratar e matar mulheres todos os anos, a modernidade e a era da informação conectada trazem esse novo conceito de violência de gênero. Para tanto, em 2018 foi sancionada a Lei n. 13.718 que tornou crime a conduta de importunação sexual, acrescendo ao Código Penal o artigo 218-C e assim tipificou a conduta de divulgar por qualquer meio, de vídeo e foto de cena de sexo ou nudez ou pornografia sem o consentimento da vítima, prevendo pena de 1 (um) a 5 (cinco) anos de reclusão. A pena ainda pode ser aumentada de um a dois terços se o crime for praticado por alguém que mantém ou tenha mantido relação íntima de afeto com a vítima ou pratique o crime com o fim de vingança ou humilhação.

Para que a vítima possa reagir à agressão e denunciar seu ofensor alguns passos importantes precisam ser seguidos. 

Como a vítima deve agir

Ao ter imagens íntimas vazadas sem consentimento a vítima deverá imediatamente seguir alguns passos importantes para que a denúncia seja levada às autoridades. Nesse sentido, o passo a passo deve ocorrer na seguinte ordem de ação. 

1-) Reunir o maior número de evidências possíveis. Gravar e arquivar informações de páginas e conteúdos relativos ao vazamento, não esquecendo de salvar os endereços de url das páginas em que o material foi exposto. É fundamental ainda que a vítima faça prints das telas com as imagens expostas e arquive e-mails com o conteúdo exposto. 

2-) Para processar o autor do crime, é imprescindível que se registre em cartório por meio de ata notarial todo o material coletado. Sem a ata notarial a materialidade do crime poderá ser contestada, com provável sucesso, pelo agressor.

3-) Registrar boletim de ocorrência  na delegacia mais próxima. A vítima pode ainda registrar o fato na delegacia de cibercrimes da sua cidade ou ainda procurar a delegacia da mulher. O importante é que o crime seja informado e passe a ser investigado. Considerado o volume de trabalho existente nas delegacias de polícia, o melhor caminho é levar os indícios e provas devidamente organizados e indexados, se possível por meio de petição subscrita e orientada por advogado, tudo de forma a facilitar e tornar a investigação mais ágil. 

4-) Denunciar o conteúdo ao site, blog ou plataforma em que as imagens foram vazadas. Para maior efetividade no pedido, é importante buscar apoio de amigos e familiares na denúncia, fazendo com que o conteúdo seja rapidamente removido. 

Não estigmatizar, mas acolher

Do serviço público, familiares, amigos e terceiros, o caminho é um só. Não criminalizar a vítima em hipótese alguma. Impedir que julgamentos morais e sociais estigmatizem o fato é fundamental para que o agressor seja identificado e punido e se dê voz firme à vítima.

Acolha a vítima, encaminhe ela a um atendimento psicológico e trate o assunto com empatia e compreensão. Lembre-se, a vítima não é culpada, não cometeu crime nem muito menos fez algo de errado. O criminoso está do outro lado da tela. E um dia aquele que julgou ou estigmatizou pode ser vítima.