O DNA DE UM FEMINICIDA: influências comportamentais, sociais e culturais

Por Maria Francisca Accioly

No último artigo publicado, que abriu a série de quatro produções sobre Feminicídio no Brasil, falamos sobre as raízes desse crime hediondo com o foco no sujeito principal dessa ação. Identificamos com isso que, na verdade, são sujeitos, protagonistas, assim mesmo, no plural, para um dos maiores males do século. Focar exclusivamente no homem agressor, no feminicida, é reconhecer parte do problema. Ao olharmos com maior amplitude e análise crítica, descobrimos que a família, a sociedade, os valores culturais têm uma participação determinante na formação desses criminosos.

Para tanto, hoje, vamos aprofundar um pouco mais na análise do contexto que contribui para a formação de um agressor. Vamos visitar e conhecer a construção dos gatilhos emocionais que constroem um agressor de mulheres, um potencial feminicida. Manter a cabeça aberta nos próximos parágrafos é recomendável. Não estamos aqui discutindo ideologias, convicções ou verdades infladas em bolhas digitais. A proposta é crítica e analítica. A ideia central é construir pontes para o conhecimento, não muros e trincheiras sociais.

Vamos lá?

Cultura patriarcal e sentimento de posse

Ter para ser! A construção social do indivíduo teve como base, ao longo de séculos, a perspectiva de que caberia ao homem conquistar tudo em sua vida, nem que fosse à custa  de sangue, suor e conflitos. Conquistar! Tomar à força da vida, se necessário. A cultura masculina de conquistar, prover e dominar criou, ao longo dos anos, deformações sociais que hoje parecem intransponíveis em curto e médio prazo. Isso, pelo simples fato de que ao longo dos anos, milhares e milhares de meninos foram criados sob o crivo de que todo o esforço, dedicação e foco nos seus resultados sociais, profissionais e emocionais seriam recompensados com posses. A posse de uma casa, de um carro, de uma estabilidade financeira, tudo conquistado com a força do trabalho e do esforço. A posse de um respeito social pela posição conquistada na sociedade a partir das conquistas obtidas desde a escola. Por fim, a conquista e a posse de uma mulher que lhe dará filhos, família e um “território” seu. A materialização de uma vida de conquistas.

Sim. Homens foram criados ao longo de anos para conquistar e ter reconhecida suas conquistas. No entanto, alguns deles, ao receber toda essa carga cultural, comportamental, social, absorveram tais “verdades” como imutáveis e fizeram disso um dogma de vida. Com isso, cresceram intolerantes à rejeição, frustração, questionamentos, indiferenças e confrontos. Basicamente nunca souberam como lidar com as adversidades, com a diferença de pensamentos, com a empatia e, principalmente, com a ideia de que uma mulher, assim como um homem, tem vida própria sendo livre para ir e vir, pensar e decidir sobre a própria vida, objetivos e condutas.

Chegamos a um momento importante.

Minha posse, minhas regras

Ao compreendemos a forma com que o homem é criado na sociedade, entendendo a construção de seus valores e objetivos de vida, assim como seus sentimentos de posses e conquistas, chegamos a um novo momento do texto. É hora de entender como esses valores transmitidos pela família, pela sociedade, afetam alguns indivíduos ao ponto de torná-los intolerantes e violentos com mulheres.

A ideia de ser o “cabeça” da família, o pilar da sociedade, transmite ao homem, uma ideia de poder e superioridade que só é possível existir graças aos reforços transmitidos desde sua infância até sua vida adulta. Some-se a isso, a formação de um indivíduo em um lar em que os homens da família demonstram parcial ou total desprezo e indiferença às necessidades da mulher. Um ambiente em que a palavra final é do homem, mesmo estando ele errado. Acrescente a ideia propagada de que em casa um “manda” e os demais obedecem e temos, finalmente, a “tempestade perfeita” em formação.

O exemplo dado a meninos, desde o berço de sua criação, até o desabrochar da vida adulta nos redutos masculinos, sempre teve como premissa básica o patriarcado. Homens devem ser belicosos em seus assuntos, precisam dar ordens, levar a família com pulso firme e sempre, em absoluto, mostrar quem manda. Ao não fazer isso, cria-se a ideia de fragilidade, submissão e claras propensões ao fracasso. Homem que não se impõe, supostamente, não seria homem.

E observando as nuvens desta tempestade, precisamos olhar para o outro lado e interpretar toda a mudança de valores e comportamentos encontrados no universo feminino. As mulheres, por sua vez, mesmo vivendo em meio a essa ufania machista, passaram a reagir e buscar seu espaço na sociedade. Na sociedade moderna, um dos movimentos mais expressivos nasce na década de 60, nos Estados Unidos da América, sob a bandeira “Libertação Feminina” e se espalha pelo mundo. Não se exclui aqui o nascimento do movimento feminista, ocorrido na Revolução Francesa, em 1789, porém, o objeto aqui é dar um enfoque aos contextos contemporâneos.

Retomando, com o movimento crescente e legítimo de independência das mulheres, a tensão de gênero aumentou consideravelmente ao longo das últimas décadas, resultando em cada vez mais casos de agressões e assassinatos de mulheres vítimas de seus parceiros.

O motivo para esse crescimento se atribui á necessidade da mulher de conquistar seu espaço, exigir respeito e igualdade de condições da sociedade. O que se trata aqui é o fato de que embora as mulheres tenham lutado e ainda lutem pelo seu espaço, direitos e condições iguais na sociedade, à estrutura social, familiar, econômica nunca evoluiu no mesmo ritmo. O mais grave é entender que além de não evoluir no mesmo ritmo, a sociedade por anos ignorou e tentou anular esse movimento, reforçando ainda mais a ideia de que a mulher está em segundo plano e que cabe ao homem conduzir, decidir, determinar e prover os rumos da família, da sociedade, do mundo por assim dizer.

As mulheres, evoluindo e buscando seu espaço, voz e vez, agiram em concordância com aquilo que se espera de uma sociedade moderna, crítica, equilibrada e justa. A sociedade, de uma forma geral, não o fez com a mesma dedicação e intensidade, enfraquecendo os avanços obtidos pelas mulheres e dando ainda mais suporte à ideia patriarcal do homem de “minha posse, minhas regras”.

Agredidas e mortas

Se o homem é o dono e senhor de tudo, conforme se estabeleceu ao longo de séculos. Se cabe a ele prover, cuidar, proteger e punir aqueles que ama, o que farão muitos homens em idade adulta, produtiva, donos de plenas faculdades mentais, ao serem confrontados por uma mulher?

A resposta é simples.

Haverá agressão à mulher.

E é preciso entender que agressão não é apenas física. A agressão pode ser psicológica, financeira e emocional. De alguma forma, a mulher será agredida e, no pior dos casos, terminará assassinada.

Em pesquisa divulgada no primeiro semestre de 2021, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostrou que no Brasil, uma em cada quatro mulheres é ou já foi vítima de violência doméstica. Os agressores? Pais, irmãos, maridos, namorados, companheiros. Homens, que no íntimo do lar, no seio familiar, decidem quando é hora de amar e quando é hora de “punir” as mulheres com quem vivem ou convivem. Esse comportamento doentio e violento que revela um dado ainda mais chocante. No Brasil, segundo os dados da pesquisa, 48% da população feminina é vítima de algum tipo de violência doméstica todos os anos.

As formas de violência

Do percentual total apurado pela pesquisa, 18,6% das mulheres agredidas no Brasil relatam terem sido vítimas de ofensas verbais. Já 6,3% afirmaram que foram vítimas de tapas, chutes, socos e outras agressões físicas. Entre as que afirmaram terem sido vítimas de ofensa sexual ou algum tipo de relação forçada o número chega a 5,4%. Mulheres que foram ameaçadas com facas, revólveres e outros tipos de armas somam 3,15% e as que relataram ter sofrido espancamento chegam a 2,4%. É importante lembrar que esses números tendem a ser ainda maiores, já que é de conhecimento público que muitas mulheres ainda não denunciam seus agressores por medo ou por simplesmente acreditarem que eles irão mudar.

A pesquisa revelou ainda que 73,5% dos brasileiros acreditam que a violência doméstica no Brasil aumentou nos últimos anos. Pais, irmãos, filhos, maridos, namorados, companheiros, ex-companheiros, agressores que constroem uma estatística sombria e mortal para as mulheres.

Ao visitar todo o contexto apresentado e analisar os dados, as reflexões que ficam ao término dessa leitura é de como mudar tal realidade para as gerações futuras. É possível e aceitável admitir que as famílias, a sociedade de forma geral, ainda fomentem a ideia de dominação do homem na sociedade? É aceitável que a mesma sociedade, ainda que de forma discreta e velada, mantenha invisível a questão de igualdade de gênero? Deixo essas perguntas a você que chegou até aqui, com a certeza de que muitas outras estão sendo formuladas pela sua leitura crítica nesse momento.

No nosso próximo encontro, uma discussão sobre o perfil dos agressores.