O acordo de não persecução penal e a possibilidade do seu oferecimento após o recebimento da denúncia ou sentença penal condenatória

Por Maria Francisca Accioly e Matheus Robert da Silva

O acordo de não persecução penal (ANPP) tem por finalidade evitar o encarceramento desnecessário e o cumprimento de pena por parte do investigado, acusado ou sentenciado, desde que cumpridas certas obrigações[1].

Os requisitos estão dispostos no caput do artigo 28-A do Código de Processo Penal, quais sejam: (i) não ser caso de arquivamento do inquérito policial; (ii) confissão formal e detalhada por parte do investigado; (iii) o crime ter sido cometido sem violência ou grave ameaça e (iv) a pena mínima do delito ser inferior a quatro anos.

Outras condições cumulativas ou alternativas também podem ser aplicadas e estão estabelecidas nos incisos deste artigo, tais como eventual reparação do dano ou restituição da coisa à vítima, renúncia a bens e direitos, prestação de serviços à comunidade, pagamento de prestação pecuniária, dentre outras passíveis de indicação pelo Ministério Público.

Vale aqui destacar o cabimento deste instituto em casos que envolvem isoladamente crimes de corrupção, prevaricação, peculato, lavagem de dinheiro, gestão fraudulenta, daí a importância da análise a fundo deste tema, eis que tal medida pode ser aplicada aos envolvidos em diversas operações deflagradas no país.

A questão que se discute mais precisamente neste artigo é o momento processual cabível do instrumento despenalizador.

 O Ministério Público, através do Grupo Nacional de Coordenadores de Centros de Apoio Criminal no Colégio Nacional de Procuradores Gerais de Justiça – GNCCRIM/CNPG, publicou o enunciado interpretativo de nº 20 que limita o cabimento:

ENUNCIADO 20 (ART. 28-A)

Cabe acordo de não persecução penal para fatos ocorridos antes da vigência da Lei nº 13.964/2019, desde que não recebida a denúncia.[2]

Entendeu o órgão ministerial que o ANPP tem natureza exclusivamente processual e, nos casos em que a denúncia já foi recebida, a lei não retroagirá. Com todo o respeito, tal entendimento não merece prevalecer.

O instituto substituirá a instrução processual pelo cumprimento de determinadas condições, possuindo, portanto, natureza processual.

Mas, além disso, esta medida processual tem por finalidade, quando devidamente cumprida, extinguir a punibilidade do beneficiado (Art. 28-A, §13º do CPP), daí porque possui natureza híbrida, já que apta a produzir resultado material penal.

Deste modo, ao possuir natureza penal e se tratar de lei mais benéfica ao acusado/sentenciado, a norma deverá retroagir para beneficiar o réu, mesmo que atos processuais tenham sido realizados, sendo aplicado o princípio da lex mitior insculpido no final do artigo 5º, inciso XL, da Constituição da República[3].

Nesse sentido a doutrina pátria:

“O princípio da irretroatividade da lei penal mais severa e o da retroatividade da lei penal mais benéfica são aplicados somente a leis que possuam conteúdo de direito penal material; às leis de caráter penal processual não são aplicados os princípios estudados.

Saliente-se a importância de definir o tipo do conteúdo da lei, pois uma lei processual pode ter conteúdo de direito material, quando então deverão incidir os princípios acima mencionados. Um exemplo seria uma lei nova que venha a proibir fiança para determinado crime. A nova norma é uma lei processual, mas atinge diretamente o direito à liberdade (material), não devendo, portanto, retroagir, sendo um caso de reformatio in pejus.

[…]

Questão que denota importância é quando a nova lei possui caráter misto, ou seja, processual e penal. Nesses casos, o conteúdo que impera é o penal em detrimento do processual penal, aplicando-se, portanto, os princípios da retroatividade da lei.[4]

***

“De outro lado, e de volta às questões genéricas de direito intertemporal, tratando-se de normas de conteúdo misto, contendo disposições de Direito Penal e de Direito Processual Penal, deve-se seguir o conteúdo normativo das primeiras. É que a regra da irretroatividade da norma penal desfavorável ao acusado deve prevalecer sobre os comandos de natureza processual. Se, porém, for mais favorável, pode-se aplicar a lei desde logo.[5]

***

“Em regra, as normas processuais são publicadas para vigorar de imediato, aplicando-se a todos os atos ainda não praticados e atingindo, por conseguinte, alguns fatos ocorridos antes de sua vigência. Entretanto, existem normas processuais penais que possuem íntima relação com o direito penal, refletindo diretamente na punição ao réu. Em virtude disso, a doutrina busca classificar as normas processuais em normas processuais penas materiais e normas processuais penais propriamente ditas.

As primeiras, tratando de temas ligados ao status libertatis do acusado (queixa, perempção, decadência, prisão cautelar, prisão em flagrante etc.), devem estar submetidas ao princípio da retroatividade benéfica. A respeito, para exemplificar, confira-se o disposto no Código Penal argentino: “No cômputo da prisão preventiva observar-se-á separadamente a lei mais favorável ao processado” (art. 3.º).”[6]

De forma analógica, cita-se a ADI 1.719 julgada pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal e na qual se postulava a declaração de inconstitucionalidade do artigo 90 da Lei 9.099/95[7] – Lei dos Juizados Especiais – por desrespeitar o princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica.

O e. Ministro Joaquim Barbosa, relator da ADI, em seu voto interpretou que a Lei 9.099/95 possuía natureza híbrida, vez que havia normas de natureza penal e processual penal, devendo, por isso, ser aplicado o princípio da lex mitior.[8]

Confira-se a decisão:

PENAL E PROCESSO PENAL. JUIZADOS ESPECIAIS. ART. 90 DA LEI 9.099/1995. APLICABILIDADE. INTERPRETAÇÃO CONFORME PARA EXCLUIR AS NORMAS DE DIREITO PENAL MAIS FAVORÁVEIS AO RÉU.

O art. 90 da lei 9.099/1995 determina que as disposições da lei dos Juizados Especiais não são aplicáveis aos processos penais nos quais a fase de instrução já tenha sido iniciada. Em se tratando de normas de natureza processual, a exceção estabelecida por lei à regra geral contida no art. 2º do CPP não padece de vício de inconstitucionalidade. Contudo, as normas de direito penal que tenham conteúdo mais benéfico aos réus devem retroagir para beneficiá-los, à luz do que determina o art. 5º, XL da Constituição federal. Interpretação conforme ao art. 90 da Lei 9.099/1995 para excluir de sua abrangência as normas de direito penal mais favoráveis ao réus contidas nessa lei.[9]

Como se não bastasse, dois institutos presentes na Lei 9.099/95, de caráter muito similar ao acordo de não persecução penal, também foram alvo de análise pela Corte Suprema. Tratam-se dos benefícios da transação penal e da suspensão condicional do processo elencados nos artigos 76 e 89 da referida norma.

No bojo dos autos de Inquérito n. 1.055 o Supremo Tribunal Federal, através de questão de ordem levantada pelo relator e. Min. Celso de Mello, discutiu a possibilidade de a Lei dos Juizados Especiais retroagir para os casos em que a instrução penal já havia se iniciado. Determinou-se então que os benefícios supramencionados configurariam normas penais benéficas e, portanto, deveriam retroagir. A questão de ordem restou assim ementada:

[…] CONSAGRAÇÃO DE MEDIDAS DESPENALIZADORAS – NORMAS BENEFICAS – RETROATIVIDADE VIRTUAL.

[…] Esse novíssimo estatuto normativo, ao conferir expressão formal e positiva as premissas ideológicas que dão suporte as medidas despenalizadoras previstas na Lei n. 9.099/95, atribui, de modo consequente, especial primazia aos institutos (a) da composição civil (art. 74, parágrafo único), (b) da transação penal (art. 76), (c) da representação nos delitos de lesões culposas ou dolosas de natureza leve (arts. 88 e 91) e (d) da suspensão condicional do processo (art. 89).

As prescrições que consagram as medidas despenalizadoras em causa qualificam-se como normas penais benéficas, necessariamente impulsionadas, quanto a sua aplicabilidade, pelo princípio constitucional que impõe a lex mitior uma insuprimível carga de retroatividade virtual e, também, de incidência imediata.[10]

Em outras palavras, o Plenário do Supremo Tribunal Federal entendeu que as medidas despenalizadoras são normas penais híbridas e benéficas ao réu, devendo, então, respeitar o corolário constitucional da retroatividade (Artigo 5º, inciso XL, da CRFB/88).

Também não há que se opor à concessão do benefício sob o argumento de que a sentença penal condenatória já foi prolatada[11], eis que a redação do parágrafo único do artigo 2º do Código Penal determina que a eficácia normativa-penal da lex mitior retroagirá em qualquer caso, inclusive quando o processo já tenha transitado em julgado:

Art. 2º. Ninguém pode ser punido por fato que lei posterior deixa de considerar crime, cessando em virtude dela a execução e os efeitos penais da sentença condenatória.

Parágrafo único. A lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado.

Sobre a aplicação do artigo 2º do Código Penal, Guilherme de Souza Nucci leciona que:

“A retroatividade da lei significa a possibilidade de conferir efeitos presentes a fatos ocorridos no passado, modificando, se preciso for, situações jurídicas já consolidadas, sob a égide de lei diversa. Essa retroação da norma, provocadora de inovações no cenário penal, somente pode ocorrer quando auxiliar, proteger e melhorar a situação do réu ou sentenciado.

Seu alcance é capaz de desconstituir a coisa julgada, permitindo o surgimento de inéditas decisões judiciais, recompondo o quadro anterior, sob ótica diferente, inspirada em nova política criminal estatal.”[12]

Neste sentido, respeitando a orientação do Plenário, a 1ª Turma da Corte Suprema, em sede de julgamento do Habeas Corpus n. 74.017/CE, admitiu a possibilidade de incidência da suspensão condicional do processo em caso com sentença já prolatada. Confira-se:

Habeas Corpus impetrado contra acórdão que, em 13/12/95, sem pedir manifestação do Ministério Público sobre a admissibilidade da suspensão do processo prevista no art. 89 da Lei nº 9.099/95, em vigor desde 27/11/95, confirmou a sentença de 19/06/95, que condenara o paciente a 15 dias de detenção e 50 dias multa, por infringência do art. 330 do Código Penal. Efeito retroativo das medidas despenalizadoras instituídas pela citada Lei nº 9.099 (Precedente do Plenário: Inquérito nº 1.055, D.J. de 24/05/96). Pedido deferido para, anulados o acórdão e a sentença, determinar-se a remessa dos autos da ação penal ao Tribunal Especial Criminal, para a aplicação, no que for cabível, do disposto nos artigos 76 e 89 da Lei nº 9.099-95.[13]

Portanto, não restam dúvidas que o acordo de não persecução penal possui natureza material penal e deve retroagir para casos em que a denúncia já tenha sido oferecida ou, até mesmo, haja sentença condenatória prolatada, da mesma forma que os demais instrumentos despenalizadores instituídos no ordenamento jurídico-penal brasileiro, pois, caso contrário, restará violado o princípio constitucional da retroatividade da lei penal mais benéfica.

Logo, a apresentação de proposta de acordo de não persecução penal pelo Ministério Público não está restrita aos casos de investigação, sendo direito subjetivo dos envolvidos em casos penais já devidamente iniciados.

Sobre os autores:

Maria Francisca Accioly – Advogada, Mestre em Direito pela UFPR, Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela PUCSP

Matheus Robert da Silva – Acadêmico de Direito na Universidade Estácio de Sá de Curitiba/PR


[1] NUCCI, Guilherme de Souza. Pacote Anticrime Comentado: Lei 13.964, de 24.12.2019. 1ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 60.

[2] Comissão Especial – GNCCRIM. Enunciados Interpretativos da Lei nº 13.964/2019 – Lei Anticrime. Disponível em: http://www.criminal.mppr.mp.br/arquivos/File/GNCCRIM_-_ANALISE_LEI_ANTICRIME_JANEIRO_2020.pdf. Acesso em 15/04/2020.

[3] Art. 5º, inciso XL: “A lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”.

[4] CALLEGARI, André Luís. Comentário ao artigo 5º, inciso XL. In. CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar Ferreira; SARLET, Ingo Wolfgang; STRECK, Lenio Luiz. (Coords). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013, p. 390.

[5] PACELLI, Eugênio. Curso de Processo Penal. 23ª ed. São Paulo: Atlas, 2019, p. 30.

[6] NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 204, p. 56 e 57.

[7] Artigo 90. As disposições desta Lei não se aplicam aos processos penais cuja instrução já estiver iniciada.

[8] Notícias STF. MB/LF. Plenário reafirma entendimento de que lei penal mais benigna deve retroagir para beneficiar o réu. Segunda-feira, 18 de junho de 2007. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=70284.

[9] ADI 1719, Relator: Ministro Joaquim Barbosa, Tribunal Pleno. Julgado em 18/06/2007, DJe-072. Divulgado em 02/08/2007. Publicado em 03/08/2007. DJ 03/08/2007.

[10] INQ. 1.055 QO. Relator: Ministro Celso de Mello, Tribunal Pleno. Julgado em 24/04/1996. DJ 24/05/1996. PP-17412. EMENT VOL-01829-01 PP-00028.

[11] Sobre o tema, Paulo José da Costa Júnior comenta que: “Consoante dispõe o parágrafo único do art. 2º do CP, a lei posterior, se de algum modo beneficiar o réu, retroagirá, transitada ou não em julgado a sentença condenatória. […]” – COSTA JÚNIOR, Paulo José da. COSTA, Fernando José da. Curso de Direito Penal. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 79.

[12] NUCCI, Guilherme de Souza. Princípios Constitucionais Penais e Processuais Penais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 120.

[13] HC 74.017, Relator: Ministro Octavio Gallotti, Primeira Turma. Julgado em 13/08/1996. DJ 27/09/1996. PP-36153. EMENT VOL-01843-02 PP-00318.